top of page
  • Preto Ícone YouTube
  • Black Facebook Icon
  • Black Instagram Icon

My BOOKS

Anchor 1

 

ALMOÇO DE DOMINGO

 

Quando jovem a rotina

de minha família

me agredia

 

Todos acordados a correria,

o entra e sai para o chuveiro

o café com leite e as bolachas,

pão era raro, era longe o padeiro

 

À noite cada um em um horário

Chegava, comia, se banhava e dormia

A gente mal se via

 

Nos finais de semana, minha mãe

reclamava, as crianças gritando e

o tempo roto se arrastando

 

O auge era o almoço no domingo

Um ritual que tínhamos que venerar

Todos à mesa, macarrão, frango e

refrigerante, que fosse o que fosse

minha mãe chamava de guaraná

 

Cansado fugi pra ver mundos,

destruir vidas, enlouquecer,

até que me arrependi

 

Hoje estou de volta,

os rostos envelheceram,

as vozes ficaram mais graves

Mas no domingo, ainda há

macarrão, frango e guaraná 

 

LOBISOMEM

Minha mãe fez uma história

sobre Lobisomem

 

De noite

            ele veio me visitar

 

Fui para o meio de minha mãe

e meu pai

 

que disse

que era bobagem,

que lobisomem nunca houve,

e eu era medroso

 

A mãe insistiu:

“Fique aqui”

 

Dormimos bem

Dormimos família

Dormi passarinho

 

Daí em diante

Lobisomem sempre

apareceu pra mim

 

 

 

 

 

Poesia se é que há

Ser poeta em tempos tão cinzas não me parece uma tarefa fácil. Há tempos perdeu-se no próprio tempo a aura sublime da poesia, do encantamento, do querer encantar, do querer cantar – versos, estrofes, rimas, ritmos ou apenas palavras. Do querer quiçá amar as encruzilhadas do cotidiano, ora amenas e tênues, ora frenéticas e contrastadas.

Mas há ainda aqueles que conseguem extrair do mundo real a fração imaginária de cores, sabores, aromas e imagens necessárias para a reinvenção da poesia e mais que isso, fazer tornar real o fomento da esperança por um mundo melhor. É isso que faz com maestria o meu amigo poeta Fabiano Fernandes Garcez, um artista das palavras, mestre na ordenha seca das pedras do cotidiano, mestre Midas na arte de transformar o cinza pálido do dia-a-dia, numa rosa nada cálida de poemas, poesias, historinhas cheias de graça, gracejos, sonhos, cores e sentimentos.

Fabiano é um personagem completo da arte de criar alegrias, de construir sonhos e de torná-los cada vez mais palpáveis. É em síntese, o que a sua obra nos mostra: um plural.

Portanto, utilizem-se destas páginas que daqui se seguem para um reencontro sutil com uma vida nova, cheia de novas esperanças, de palavras repletas de conteúdo, de valores que vão da simplicidade da arte à mais complexa riqueza existencial.

 

 

Rodrigo Augusto Fiedler do Prado

SE JESUS VOLTASSE HOJE

 

Quem acreditaria

se Jesus voltasse hoje?

Mas, se ele voltasse,

seria brasileiro

 

Nasceria na periferia

de São Paulo

seria negro?

cantaria RAP?

 

Sobreviveria a

Mortalidade infantil?

Exclusão social?

E a violência sobreviveria?

 

Se Jesus voltasse hoje

nasceria no sertão da Paraíba,

ou Pernambuco

Teria voz grave e rouca

para falar a multidão

e cantar repente

 

Sobreviveria a seca?

                        a fome?

Sobreviveria ao racismo?

 

Se Jesus voltasse,

hoje no Brasil

dormiria nas ruas?

Comeria de favor?

 

Chamaria Jesus?

Genésio, Gésio

Ou Mané, José, João

Benedito, Romão?

Precisaria Ele de nome?

 

Seria católico?

         evangélico?

Seria caótico?

Seria cristão?        

         Espírita?

Novamente judeu?

Seria Jesus ateu?

 

Acreditaria nele os Deuses?

Essas religiões?

Seus seguidores?

Seus patrocinadores acreditariam?

 

Ou prefeririam acreditar

naquele de barro, louça,

gesso ou madeira

que fala pela boca dos outros

Se Jesus voltasse hoje,

falaria o que já falou?

se é que falou

 

Saberia Jesus escrever?

Seria um teólogo?

Para saber sobre as religiões?

Agora dessa vez, caso

voltasse,  desrespeitaria as regras

como já fez?

Se Jesus voltasse quem

acreditaria?

O Diabo?

O tentaria?

E Deus?

Acreditaria ou o abandonaria?

 

Se Jesus voltasse hoje

ganharia dinheiro?

Investiria?

Agradeceria suas vitórias?

Ou reclamaria suas derrotas

a um Jesus mais antigo!

 

Se Jesus voltasse

compraria crucifixos?

Pagaria dízimos?

Casaria? Na igreja?

 

Se Jesus voltasse

nasceria brasileiro

Você acreditaria?

Ou o condenaria?

Será que já não nasceu?

 

 

 

Diálogos que ainda restam


Mote Contínuo

 

     Diálogos... sempre que vejo a palavra escrita, vêm-me à lembrança os nomes de Platão, Sócrates, Jesus... filósofos e mestres anteriores ao giz e à lousa, que ensinavam dominando, entre outras, a arte de falar.

     O universo da poesia, do verso, deriva, de igual forma, da tradição oral. Segundo afirmam muitos teóricos, o verso era preferível à prosa porque se prestava melhor à memória.

     Quando Fabiano Fernandes Garcez escolhe a palavra Diálogos para dar nome ao seu segundo livro, ele faz, na verdade, um oportuno resgate do espírito primeiro da poesia: a oralidade, a palavra que brota da boca do poeta.

     E a poesia de Fabiano é assim mesmo; uma quase conversa de fala simples, cotidiana, que se desvia da prosa pelo uso do refrão, do ritmo, de algumas aliterações... recursos musicais pertinentes ao verso.

     Mas com quem Fabiano conversa em sua obra?

     Nos últimos meses, tive o prazer de ser convidado por Fabiano para participar, antes que as palavras fossem impressas, de uma conversa sobre sua poesia, uma prosa sobre seus versos. E trocamos, literalmente, impressões, imagens, rimas, desmembramos palavras para criar palavras novas, recompusemos linhas, refletimos versos.

     Fabiano é um poeta consciente do valor da palavra, do estudo da forma, do polimento constante e sabe da importância de dialogar com a poesia de poetas do presente e do passado.

     Além desse diálogo literário, porém – fundamental a todo aquele que escreve –, Fabiano eleva sua voz para conversar com as suas memórias, a sua infância, com suas angústias, seus medos, com seus amores, suas esperanças, com suas convicções e incertezas, com suas verdades e sonhos, com o livro que já escreveu, com os livros que ainda virão, com a sua própria alma; conversa com o Alto e com o chão.

     A principal conversa, contudo, começa agora, em suas mãos: encontro entre a voz do poeta e a voz do leitor – Diálogos Que Ainda Restam...

 

César Magalhães Borges

Julho/ 2009

 

A GENTE QUE ME REFIRO

 

Vamos ao teatro, Maria José?

Quem me dera,

desmanchei em rosca quinze quilos de farinha,

tou podre. Outro dia a gente vamos

(...)

 

Adélia Prado

 

 

A gente que me refiro

não é eu ou você

nós

 

A gente que me refiro

são as pessoas

 

e a gente comum não vai

a gente vamos

                       em bando

                       em banda

                       embalando

                       em comunidade

 

 

 

blá

falavam

blá blá

escutavam

blá blá blá

perfeitamente

ão dialogavam

 

 

 

 

EU NÃO SOU EU

 

Eu não sou eu, sou outro

E outro que não o outro, que não eu

Eu sou outro e outro e

                         outros tantos e eu

 

Se sou eu que é outro

                        o eu que sou também não sou eu

Com tantos eu, outro e outros eus,

            como posso olhar algo e dizer: isso é meu?

 

Como pode ser meu,

se o eu que sou não sou eu?

Quando eu digo meu,

o eu pode estar se referindo ao meu que é do outro

o outro que não sou eu,

então, esse algo é seu!

 

Mas se sou eu e outro

                        o outro também sou eu

Aquilo que é seu é meu!

 

Eu Fabiano, Fernando, Carlos

            que diferença faz, se todos os outros sou eu

 

Eu sou o outro e os outros

            sem deixar de ser eu

      sou eu e sou outro

            e os outros sou eu

 

Mas os outros que não o outro,

que não os outros outros

que não eu, também sou eu? 

Âncora 2
Nova Imagem.jpg
Rastros para um testamento

O FRÁGIL LUME DAS PALAVRAS

Em testamento, costuma-se deixar o que se tem de valor. Legamos aquilo que acumulamos durante a vida. Não só o que acumulamos, mas sobretudo o que conquistamos.

De certa forma, todo livro é um testamento: em suas páginas, o autor nos deixa o fruto do seu trabalho.  Testamento compartilhado com todos que o lêem.

E o autor destes poemas? O que quer nos legar?

Sigamos os seus rastros.

Antes, um aviso: o caminho proposto não começa, necessariamente, neste livro, que é o terceiro do poeta. Fabiano Fernandes Garcez já nos legou outros dois belos trabalhos: Poesia, se é que há (2008) e Diálogos que ainda restam (2010). 

Chega, agora, ao terceiro livro e, neste, o flagramos nos meandros da memória a tatear raízes e paredes com mãos de menino. Ali, em sua infância, entre deslumbres e descobertas, vemos os primeiros rebentos no tronco do futuro poeta.

Tronco. Palavra que nos remete a raízes. Não por acaso alguns poemas tratam de família; falam dos pais e também do avô.

Seguindo os versos da primeira parte do livro (as pegadas do menino-poeta), chegamos à segunda leva de poemas: as fendas. Bem poderíamos chamá-las de ausências: ausência na pista limpa de carros; ausência de atenção à aula chata; ausência dos entes queridos à mesa do jantar.

E não só de ausências se constrói esta parte do livro, mas também de descoberta (do amor às palavras), de inaptidão (em empinar pipas) e de reconciliação (com a velhice). 

Saltando essas fendas – mas, claro, sem deixar de apreciar o que elas contêm – chegamos à última parte: os testamentos.

Nesta, encontraremos poemas, digamos assim, mais duros e maduros. Poemas com uma temática mais urbana, com anjos indiferentes e asas de fuligem. Ao lermos o poema Nascente, sentimos que o autor pretende retomar o tema da primeira parte, mas agora com a voz de um poeta adulto: “tenho por dever me curvar / às minhas raízes / que me sustentam / que me solidificam / Eu concreto e mudo”.

E com a última peça do livro, Garcez parece nos convidar a seguir com ele os nossos próprios rastros, na escuridão íntima do nosso ser: “Esse é meu ofício / É por isso que carrego comigo / essa vela debaixo da garoa”. (...)

 

Wilson Gorj

Autor do livro HISTÓRIAS PARA NINAR DRAGÕES, entre outros.

   

ESCOLA

 

Na sala de aula:

 

preposição,

artigo,

substantivo

e locução adjetiva

 

Quarenta alunos atentos

Um só dorme

 

mas é o único que sonha!

 

Pág. 40

 

 

ANJOS

 

Olhe para cima

Veja os anjos

Eles não me conhecem

Mas sei tudo a seu respeito

Seguem bem vestidos em suas roupas

Para nossos braços, caso queiramos

competir com o impossível

Tira-nos o dom pensante se perdemos a fé

Olhe os anjos

Contemple!

Mas de longe

Nunca olhe dentro de seus olhos

Pois que não apreciam

E cegam quem os encaram

Porque seus olhos são frios, nada dizem

Anjos, não são bons, nem maus,

Anjos apenas são

E não ligam para nós

Porém são admiráveis

e nos fazem esquecer de nossa dor

 

pág. 63

LOBISOMEM

 

Minha mãe fez uma história

sobre Lobisomem

 

De noite

            ele veio me visitar

 

Fui para o meio de minha mãe

e meu pai

 

que disse

que era bobagem,

que lobisomem nunca houve,

e eu era medroso

 

A mãe insistiu:

“Fique aqui”

 

Dormimos bem

Dormimos família

Dormi passarinho

 

Daí em diante

Lobisomem sempre

apareceu pra mim

 

Pág. 21

Âncora 3
Âncora 4
Em meio aos ruídos urbanos

Acionando o não automatismo

 

     Em meio aos ruídos urbanos é um objeto visual que apresenta momentos da cidade como todos a vemos, porém enlaçado em instigações poéticas. Contendo uma estrutura compositiva crítica, linguagem e texto propõem um passeio acessível e sutil sobre as ações e fatos que nos acompanham na vivência urbana.

    Apresenta um corpo estético sólido, em preto e branco, evocando o cinza da paleta urbana, este objeto que explora do campo das visualidades são imagens que nos habituamos a ignorar. Em meio aos ruídos urbanos mostra uma cidade que constitui um todo imagético; um organismo com especificidades e funcionalidades distintas, em contrapartida aos estereótipos construídos midiaticamente.

      A cidade, o meio urbano, esse turbilhão de sensações e imagens que correm a toda velocidade e a alto e bom som, exacerba os nossos sentidos transborda pelos limites de nossos olhos. Na maioria das vezes o ato de ignorar seja a mais adequada ferramenta de proteção diante tantas e tão nocivas informações. Habituamo-nos a essa vivência automática com a cidade; insensível ao entorno, fazemos de regra uma ação que anula nossa experiência com o lugar em que vivemos.

    Considerando nossa condição de seres urbanos pós-modernos, essa leitura automática engole também nossa percepção de tempo e espaço, sendo a arte o lugar de recolocação da nossa experiência no mundo, o lugar em que se grita o não ao automatismo.

    Explorar esse universo, utilizando uma composição poética em meio a letras e imagens, é um protesto claro contra essa automatização. Uma bandeira de que pela sensibilização temos uma ação de compreensão do todo, do nosso lugar.

     Analisando a forma que essa movimentação é captada, considerando os poemas visuais um todo poético, identifica-se a lógica fotográfica de captação do instante, porém com um caráter da fotografia moderna, o de recorte munido de intencionalidade.

   Podemos assim afirmar que Em meio aos ruídos urbanos anuncia uma presentificação das subjetividades da experiência na cidade. Enfim, os poemas visuais utilizam um mecanismo de composição que presentifica momentos urbanos, dotando-os de um comprometimento com a reflexão.

   Segundo o fotógrafo Cartier-Bresson, “no ato de viver, a descoberta de nós mesmos se faz concomitantemente com a descoberta do mundo que nos cerca; mundo que pode modelar-nos, mas também pode ser por nos afetado.” Esse casamento de imagem e letra, essa música visual apresenta uma leitura da experiência urbana, da experiência com o silencioso, que nos convida a esse ato de “descoberta do mundo”, sendo por esse nosso ingresso na possibilidade de afetá-lo e se afetar por esse lugar que nos passa, por vezes automaticamente, enquanto passamos.

 

 

Aline Araújo

2 - Subia a ladeira.jpg
Âncora 5
Badaladas de uma preliminar
Capa.jpg

Badaladas de uma preliminar é o novo livro de poemas de Fabiano Fernandes Garcez, que reúne três de suas obras anteriormente publicadas, na ordem cronológica cito-as: Poesia se é que há, 2008; Diálogos que ainda restam, 2010; Rastros de um testamento, 2012; também alguns poemas inéditos compõem as páginas desta coletânea. A obra, para além de outras leituras cabíveis, é um reavivamento mnemônico da infância e de outras questões sócio-existenciais, sendo o primeiro tópico o de maior ressonância na sua obra.

Fabiano Garcez arvora na sua memória singular e afetiva a exemplo de outros poetas [Casimiro de Abreu, Manuel Bandeira, Cecília Meireles Mário Quintana, Manoel de Barros, João Paulo Paes] do passado que têm afinidade com a mesma temática. Deste modo reconstituí cenas pretéritas por intermédio do seu olhar de menino tão observador e crítico e desliza pelo tobogã do passado  sem recear o manual de conduta alheio e os efeitos produzidos

pelo uso do vernáculo. No poema Palavras soltas ele diz: “Palavras / devem viver soltas por aí / para ir correr / à vista e aos ouvidos”.

A busca permanente do fio de acontecimentos sensíveis à sua formação de pessoa humana suscita à elaboração do próprio álbum que parece tão familiar a quem lê, o poeta faz coletivizar nas suas páginas sentidos e referências que em algum momento tocou durante a infância cada um de nós.

Garcez puxa o novelo, sem pressa, com o vagar das tardes de qualquer infância, o seu verso interpela para si uma sonoridade do cotidiano que não adentra com facilidade no corpo poético, sendo portanto, versos talhados que se movimentam para um efeito desejado e comunicante esperado pelo autor. Ele, deste modo, demonstra apreciar a língua gostosa do povo, aqui menciono e evoco Manuel Bandeira. Ele se vincula e veicula as causas e o uso do idioma das massas e das minorias.

Garcez recorta cenas do cotidiano vivido na infância, espaços e pessoas comuns são retratados assiduamente em sua obra. O poeta atento também ao ambiente doméstico habilita às situações de alimentação como um momento litúrgico que une a família. Destaco o poema Ceia de natal, ele diz: “Preparo os pratos para a ceia de Natal / o peru no forno / arroz e molho”e nos versos abaixo: “O rio que aparece na porta / e pula para dentro da cozinha / ora é calmante, tranquilizante / ora é ensurdecedor”.

No Ceia de Natal é lançada a insígnia da afetividade/ partilha de um momento familiar que encontra ali bela força provocativa e existencial.

Ler Garcez sem desatar os nós internos, sem cingir os pés para saber que por detrás de suas palavras habitam o encantamento e o instante maravilhado, sem estas chaves corremos o risco do tropeço e maldizer na desventura do não entendimento hermenêutico de sua obra.

 

Jean Narciso Bispo Moura, autor de Dentro de nadir habita o zênite (2018), entre outros e editor da Revista Digital Literatura e Fechadura.

PARA A POESIA

           para Carlos Felipe Moisés

Não use copo grande

nem taça bojuda

pois se sorve às doses

por isso o cup shoot

 

Também não se bebe

no gargalo, de uma vez

pode-se afogar, a poesia

num oceano de folhas que

nada mostram

nada falam

 

pois só se faz

melodia, logo,

sentido e paz

imagem e mensagem

 

ao gole seco

em conta

                        gotas

                                    pingo

                                               a

                                               pin

                                                           go

 

                                                                       pág. 30

 

SÉCULO XXI

          para Ademir Assunção

À ponta da alta tecnologia

celulares de última geração

 

na palma da mão

como amuletos

 

ideias antiquadas

de homens obsoletos

 

                                                                       pág. 31

A POESIA QUANDO QUEIMA

​              para Rubens Jardim

Traz o punho cerrado

golpeando o ar

a voz rouca

pausada, embargada

rasgando, rompendo

 

a tarde, a noite

no meio da avenida

ou na calçada

 

A poesia quando queima

ecoa potência

de uma prece

de uma luta

de uma vida

 

Que em todos

arde, consome ou

explode

                                                                       pág. 28

Âncora 6
vinculos-e-rupturas-600x600-1_edited.jpg
VÍNCULOS E RUPTURAS – A poesia brasileira no século XXI e o Modernismo de 1922 sob o olhar da crítica

   VÍNCULOS E RUPTURAS – A poesia brasileira no século XXI e o Modernismo de 1922 sob o olhar da crítica, de Fabiano Fernandes Garcez discute duas décadas de produção crítica sobre o que seja a poesia contemporânea a fim de identificar os aspectos históricos e culturais que mobilizam a crítica contemporânea sobre essa produção. A ideia foi pensar a poesia contemporânea no ponto em que se verifica a influência de conceitos modernistas em sua produção e em sua recepção crítica. Para tanto, propusemos um levantamento e posterior análise das narrativas crítico-historiográficas, ou seja, os critérios de escolha empregados pelos estudiosos, tanto para selecionar os poetas quanto os temas. Além disso, procura-se identificar a influência do legado modernista nesse processo, justamente às vésperas do centenário do marco histórico: a Semana de Arte Moderna de 22. Faz-se necessário identificar quais aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais mobilizam essa crítica, tanto para valorizar ou ignorar certos extratos da poesia contemporânea como para verificar o quanto a poesia publicada no início do século XXI é reverberação criativa ou diluição repetitiva da tradição modernista do século XX.

Âncora 7
Um grama, apenas, do abstrato
Capa Um grama.png

4289°C

                              para Celso de Alencar

 

ontem cremamos meu pai

hoje o tenho reduzido

a fragmentos tenuíssimos

 

todo ele pulverizado

partículas suspensas

em repouso nesta urna

 

não confesso a minha mãe

que na urna acham-se cinzas

de corpos alheios além

de madeira e cetim

 

firmo o precioso cântaro

na fúnebre estante

da sala onde jazia

meu avô pai de meu pai

 

estandarte de morte e pó

onde faço minhas preces

sem me ajoelhar

 

e onde um dia minhas cinzas

serão repousadas

                        pág.24

Versos sortidos

 

“Um grama, apenas, do abstrato” é o quinto livro de Fabiano Fernandes Garcez; um livro dividido em quatro partes: Luto, Afetação, Espanto e Indagações.

As duas primeiras seções do livro – Luto e Afetação – reúnem aqueles que estão entre os melhores poemas de Garcez; poesia em ponto maduro, com temas bem desenvolvidos, trabalhados, e ótimos arremates. Como acontece na poesia oriental, muitos poemas, ao final, encontram uma revelação.

É de se destacar, nesses primeiros quadros, os poemas “Desenho I”, “II” e “III”: vê-se, aqui, uma obra aberta, em progressão, em busca de sua melhor forma, reflexo do próprio autor.

A terceira parte do livro é Espanto: ponto da obra em que poesia e prosa se aproximam, tocam-se, colidem: reverberam o beat do coração e da estrada: encontram o nonsense, o fluxo de ideias, paralelismos psicológicos. Nem tudo tem razão de ser, mas é.

Para o último quarto da obra, Fabiano traz Indagações; poemas que abrem e fecham com interrogações próprias de quem sente as perplexidades e contradições da vida.

Permeando e pontuando todo o livro está a musicalidade dos versos: a melodia das palavras e o ritmo no arranjo entre elas: efeitos que Garcez consegue pelo uso de aliterações e pelo uso de palavras tomadas e decompostas até a raiz.

Embora não haja em “Um grama, apenas, do abstrato” poemas que possam ser classificados como “visuais”, Fabiano faz bom uso da espacialidade dos versos: jogo hábil entre o vazio da página e o campo ocupado pelas letras.

As imagens, no entanto, são pintadas pelas próprias palavras. Há de se ver o “teto da epiderme”, a “jornada em spicatto”, o “dígito/ na pele/ outra” como a “tirar a lingerie da realidade” num “gargarejo de vogais”.

Fabiano é um poeta que conhece poetas: poetas de outros tempos e seus contemporâneos... e sua obra conversa com todos. Mira no que diz e acerta, também, no que não diz. Afinal, a poesia precisa ter um ar de abstração.

 

César Magalhães Borges

Maio/ 2019

Certo problema

                                    para Ângelo Donizette

Mas que

sentido

o fez

soltar

a vogal

em meio

à imensidão?

 

Que consciência

soou que

o fez

abaixar

deixar a

conversa manca

e recolher

nas mãos em concha

côncavas

o indefeso inseto

mediante o

esmagamento?

 

Que gesto

num mundo

em que a vida

é indigesta

mesmo até

de um ser

mais reles

que o som

de pólvora

que o som

de níquel

que o som

surdo da adaga

que range

que rasga

roupa, carne

e penetra

adentrando

cavando fundo

em cada um

a cada noite

a cada amanhecer

 

Que gesto é esse

que me fez

esse poema

em prol de apenas

um risco

um cisco

uma centelha

 

Enquanto

a abelha

segue

seu alheio voo

rumo

a horizonte

inconstante

                   pág. 41

A caverna dos sonhos esquecidos

 

                                       Um buraco da Rua Augusta

        me leva a um abismo no tempo perdido do paleolítico

onde mais tarde nasceria o Reino de França

 

O sussurro de Herzog desperta noites e noites esquecidas

                        o aspecto da rocha entalha litros e litros de sonhos

áureos de Ernst Reijseger

                                                       Cavalos, alces, bisões

                rinocerontes lanosos, ursos e leoas das cavernas

deixam pegadas impregnadas

                               em minhas pálpebras ancestrais

                enquanto estalactites e

                               estalagmites

        enfeitam a escuridão do brilho labiríntico

                                      

A parede de pedra

                                               tela anfitriã

relata todo o ocorrido aos meus olhos boquiabertos,                                                    satisfeitos pelo triângulo púbico

        de coxas a passar a noite com o minotauro

                                       na câmara dos leões

                                              

                               É quando duas dançarinas celebram

à esquerda de meus olhos

                               a descarga telúrica do calcário

        sob o pulsar de meu peito

estacionado na ignorância das mãos científicas

                               me ponho postado ao perceber que sou eu o artista que manipula a tinta da descoberta

                        pág.58

Misses caindo em Paris deflagram guerra nuclear?

a moda é inventada invadida pela sede, água que ninguém bebe sujas de sangue as relíquias religiosas luminosas voam atravessando a noite

Flácidos falos ácidos erguem mísseis missionários?

                        pág.71

bottom of page