My BOOKS

ALMOÇO DE DOMINGO
Quando jovem a rotina
de minha família
me agredia
Todos acordados a correria,
o entra e sai para o chuveiro
o café com leite e as bolachas,
pão era raro, era longe o padeiro
À noite cada um em um horário
Chegava, comia, se banhava e dormia
A gente mal se via
Nos finais de semana, minha mãe
reclamava, as crianças gritando e
o tempo roto se arrastando
O auge era o almoço no domingo
Um ritual que tínhamos que venerar
Todos à mesa, macarrão, frango e
refrigerante, que fosse o que fosse
minha mãe chamava de guaraná
Cansado fugi pra ver mundos,
destruir vidas, enlouquecer,
até que me arrependi
Hoje estou de volta,
os rostos envelheceram,
as vozes ficaram mais graves
Mas no domingo, ainda há
macarrão, frango e guaraná
LOBISOMEM
Minha mãe fez uma história
sobre Lobisomem
De noite
ele veio me visitar
Fui para o meio de minha mãe
e meu pai
que disse
que era bobagem,
que lobisomem nunca houve,
e eu era medroso
A mãe insistiu:
“Fique aqui”
Dormimos bem
Dormimos família
Dormi passarinho
Daí em diante
Lobisomem sempre
apareceu pra mim
Poesia se é que há
Ser poeta em tempos tão cinzas não me parece uma tarefa fácil. Há tempos perdeu-se no próprio tempo a aura sublime da poesia, do encantamento, do querer encantar, do querer cantar – versos, estrofes, rimas, ritmos ou apenas palavras. Do querer quiçá amar as encruzilhadas do cotidiano, ora amenas e tênues, ora frenéticas e contrastadas.
Mas há ainda aqueles que conseguem extrair do mundo real a fração imaginária de cores, sabores, aromas e imagens necessárias para a reinvenção da poesia e mais que isso, fazer tornar real o fomento da esperança por um mundo melhor. É isso que faz com maestria o meu amigo poeta Fabiano Fernandes Garcez, um artista das palavras, mestre na ordenha seca das pedras do cotidiano, mestre Midas na arte de transformar o cinza pálido do dia-a-dia, numa rosa nada cálida de poemas, poesias, historinhas cheias de graça, gracejos, sonhos, cores e sentimentos.
Fabiano é um personagem completo da arte de criar alegrias, de construir sonhos e de torná-los cada vez mais palpáveis. É em síntese, o que a sua obra nos mostra: um plural.
Portanto, utilizem-se destas páginas que daqui se seguem para um reencontro sutil com uma vida nova, cheia de novas esperanças, de palavras repletas de conteúdo, de valores que vão da simplicidade da arte à mais complexa riqueza existencial.
Rodrigo Augusto Fiedler do Prado
SE JESUS VOLTASSE HOJE
Quem acreditaria
se Jesus voltasse hoje?
Mas, se ele voltasse,
seria brasileiro
Nasceria na periferia
de São Paulo
seria negro?
cantaria RAP?
Sobreviveria a
Mortalidade infantil?
Exclusão social?
E a violência sobreviveria?
Se Jesus voltasse hoje
nasceria no sertão da Paraíba,
ou Pernambuco
Teria voz grave e rouca
para falar a multidão
e cantar repente
Sobreviveria a seca?
a fome?
Sobreviveria ao racismo?
Se Jesus voltasse,
hoje no Brasil
dormiria nas ruas?
Comeria de favor?
Chamaria Jesus?
Genésio, Gésio
Ou Mané, José, João
Benedito, Romão?
Precisaria Ele de nome?
Seria católico?
evangélico?
Seria caótico?
Seria cristão?
Espírita?
Novamente judeu?
Seria Jesus ateu?
Acreditaria nele os Deuses?
Essas religiões?
Seus seguidores?
Seus patrocinadores acreditariam?
Ou prefeririam acreditar
naquele de barro, louça,
gesso ou madeira
que fala pela boca dos outros
Se Jesus voltasse hoje,
falaria o que já falou?
se é que falou
Saberia Jesus escrever?
Seria um teólogo?
Para saber sobre as religiões?
Agora dessa vez, caso
voltasse, desrespeitaria as regras
como já fez?
Se Jesus voltasse quem
acreditaria?
O Diabo?
O tentaria?
E Deus?
Acreditaria ou o abandonaria?
Se Jesus voltasse hoje
ganharia dinheiro?
Investiria?
Agradeceria suas vitórias?
Ou reclamaria suas derrotas
a um Jesus mais antigo!
Se Jesus voltasse
compraria crucifixos?
Pagaria dízimos?
Casaria? Na igreja?
Se Jesus voltasse
nasceria brasileiro
Você acreditaria?
Ou o condenaria?
Será que já não nasceu?
Diálogos que ainda restam
Mote Contínuo
Diálogos... sempre que vejo a palavra escrita, vêm-me à lembrança os nomes de Platão, Sócrates, Jesus... filósofos e mestres anteriores ao giz e à lousa, que ensinavam dominando, entre outras, a arte de falar.
O universo da poesia, do verso, deriva, de igual forma, da tradição oral. Segundo afirmam muitos teóricos, o verso era preferível à prosa porque se prestava melhor à memória.
Quando Fabiano Fernandes Garcez escolhe a palavra Diálogos para dar nome ao seu segundo livro, ele faz, na verdade, um oportuno resgate do espírito primeiro da poesia: a oralidade, a palavra que brota da boca do poeta.
E a poesia de Fabiano é assim mesmo; uma quase conversa de fala simples, cotidiana, que se desvia da prosa pelo uso do refrão, do ritmo, de algumas aliterações... recursos musicais pertinentes ao verso.
Mas com quem Fabiano conversa em sua obra?
Nos últimos meses, tive o prazer de ser convidado por Fabiano para participar, antes que as palavras fossem impressas, de uma conversa sobre sua poesia, uma prosa sobre seus versos. E trocamos, literalmente, impressões, imagens, rimas, desmembramos palavras para criar palavras novas, recompusemos linhas, refletimos versos.
Fabiano é um poeta consciente do valor da palavra, do estudo da forma, do polimento constante e sabe da importância de dialogar com a poesia de poetas do presente e do passado.
Além desse diálogo literário, porém – fundamental a todo aquele que escreve –, Fabiano eleva sua voz para conversar com as suas memórias, a sua infância, com suas angústias, seus medos, com seus amores, suas esperanças, com suas convicções e incertezas, com suas verdades e sonhos, com o livro que já escreveu, com os livros que ainda virão, com a sua própria alma; conversa com o Alto e com o chão.
A principal conversa, contudo, começa agora, em suas mãos: encontro entre a voz do poeta e a voz do leitor – Diálogos Que Ainda Restam...
César Magalhães Borges
Julho/ 2009
A GENTE QUE ME REFIRO
Vamos ao teatro, Maria José?
Quem me dera,
desmanchei em rosca quinze quilos de farinha,
tou podre. Outro dia a gente vamos
(...)
Adélia Prado
A gente que me refiro
não é eu ou você
nós
A gente que me refiro
são as pessoas
e a gente comum não vai
a gente vamos
em bando
em banda
embalando
em comunidade
LÁ
blá
falavam
blá blá
escutavam
blá blá blá
perfeitamente
ão dialogavam

EU NÃO SOU EU
Eu não sou eu, sou outro
E outro que não o outro, que não eu
Eu sou outro e outro e
outros tantos e eu
Se sou eu que é outro
o eu que sou também não sou eu
Com tantos eu, outro e outros eus,
como posso olhar algo e dizer: isso é meu?
Como pode ser meu,
se o eu que sou não sou eu?
Quando eu digo meu,
o eu pode estar se referindo ao meu que é do outro
o outro que não sou eu,
então, esse algo é seu!
Mas se sou eu e outro
o outro também sou eu
Aquilo que é seu é meu!
Eu Fabiano, Fernando, Carlos
que diferença faz, se todos os outros sou eu
Eu sou o outro e os outros
sem deixar de ser eu
sou eu e sou outro
e os outros sou eu
Mas os outros que não o outro,
que não os outros outros
que não eu, também sou eu?

Rastros para um testamento
O FRÁGIL LUME DAS PALAVRAS
Em testamento, costuma-se deixar o que se tem de valor. Legamos aquilo que acumulamos durante a vida. Não só o que acumulamos, mas sobretudo o que conquistamos.
De certa forma, todo livro é um testamento: em suas páginas, o autor nos deixa o fruto do seu trabalho. Testamento compartilhado com todos que o lêem.
E o autor destes poemas? O que quer nos legar?
Sigamos os seus rastros.
Antes, um aviso: o caminho proposto não começa, necessariamente, neste livro, que é o terceiro do poeta. Fabiano Fernandes Garcez já nos legou outros dois belos trabalhos: Poesia, se é que há (2008) e Diálogos que ainda restam (2010).
Chega, agora, ao terceiro livro e, neste, o flagramos nos meandros da memória a tatear raízes e paredes com mãos de menino. Ali, em sua infância, entre deslumbres e descobertas, vemos os primeiros rebentos no tronco do futuro poeta.
Tronco. Palavra que nos remete a raízes. Não por acaso alguns poemas tratam de família; falam dos pais e também do avô.
Seguindo os versos da primeira parte do livro (as pegadas do menino-poeta), chegamos à segunda leva de poemas: as fendas. Bem poderíamos chamá-las de ausências: ausência na pista limpa de carros; ausência de atenção à aula chata; ausência dos entes queridos à mesa do jantar.
E não só de ausências se constrói esta parte do livro, mas também de descoberta (do amor às palavras), de inaptidão (em empinar pipas) e de reconciliação (com a velhice).
Saltando essas fendas – mas, claro, sem deixar de apreciar o que elas contêm – chegamos à última parte: os testamentos.
Nesta, encontraremos poemas, digamos assim, mais duros e maduros. Poemas com uma temática mais urbana, com anjos indiferentes e asas de fuligem. Ao lermos o poema Nascente, sentimos que o autor pretende retomar o tema da primeira parte, mas agora com a voz de um poeta adulto: “tenho por dever me curvar / às minhas raízes / que me sustentam / que me solidificam / Eu concreto e mudo”.
E com a última peça do livro, Garcez parece nos convidar a seguir com ele os nossos próprios rastros, na escuridão íntima do nosso ser: “Esse é meu ofício / É por isso que carrego comigo / essa vela debaixo da garoa”. (...)
Wilson Gorj
Autor do livro HISTÓRIAS PARA NINAR DRAGÕES, entre outros.
ESCOLA
Na sala de aula:
preposição,
artigo,
substantivo
e locução adjetiva
Quarenta alunos atentos
Um só dorme
mas é o único que sonha!
Pág. 40
ANJOS
Olhe para cima
Veja os anjos
Eles não me conhecem
Mas sei tudo a seu respeito
Seguem bem vestidos em suas roupas
Para nossos braços, caso queiramos
competir com o impossível
Tira-nos o dom pensante se perdemos a fé
Olhe os anjos
Contemple!
Mas de longe
Nunca olhe dentro de seus olhos
Pois que não apreciam
E cegam quem os encaram
Porque seus olhos são frios, nada dizem
Anjos, não são bons, nem maus,
Anjos apenas são
E não ligam para nós
Porém são admiráveis
e nos fazem esquecer de nossa dor
pág. 63
LOBISOMEM
Minha mãe fez uma história
sobre Lobisomem
De noite
ele veio me visitar
Fui para o meio de minha mãe
e meu pai
que disse
que era bobagem,
que lobisomem nunca houve,
e eu era medroso
A mãe insistiu:
“Fique aqui”
Dormimos bem
Dormimos família
Dormi passarinho
Daí em diante
Lobisomem sempre
apareceu pra mim
Pág. 21

Em meio aos ruídos urbanos
Acionando o não automatismo
Em meio aos ruídos urbanos é um objeto visual que apresenta momentos da cidade como todos a vemos, porém enlaçado em instigações poéticas. Contendo uma estrutura compositiva crítica, linguagem e texto propõem um passeio acessível e sutil sobre as ações e fatos que nos acompanham na vivência urbana.
Apresenta um corpo estético sólido, em preto e branco, evocando o cinza da paleta urbana, este objeto que explora do campo das visualidades são imagens que nos habituamos a ignorar. Em meio aos ruídos urbanos mostra uma cidade que constitui um todo imagético; um organismo com especificidades e funcionalidades distintas, em contrapartida aos estereótipos construídos midiaticamente.
A cidade, o meio urbano, esse turbilhão de sensações e imagens que correm a toda velocidade e a alto e bom som, exacerba os nossos sentidos transborda pelos limites de nossos olhos. Na maioria das vezes o ato de ignorar seja a mais adequada ferramenta de proteção diante tantas e tão nocivas informações. Habituamo-nos a essa vivência automática com a cidade; insensível ao entorno, fazemos de regra uma ação que anula nossa experiência com o lugar em que vivemos.
Considerando nossa condição de seres urbanos pós-modernos, essa leitura automática engole também nossa percepção de tempo e espaço, sendo a arte o lugar de recolocação da nossa experiência no mundo, o lugar em que se grita o não ao automatismo.
Explorar esse universo, utilizando uma composição poética em meio a letras e imagens, é um protesto claro contra essa automatização. Uma bandeira de que pela sensibilização temos uma ação de compreensão do todo, do nosso lugar.
Analisando a forma que essa movimentação é captada, considerando os poemas visuais um todo poético, identifica-se a lógica fotográfica de captação do instante, porém com um caráter da fotografia moderna, o de recorte munido de intencionalidade.
Podemos assim afirmar que Em meio aos ruídos urbanos anuncia uma presentificação das subjetividades da experiência na cidade. Enfim, os poemas visuais utilizam um mecanismo de composição que presentifica momentos urbanos, dotando-os de um comprometimento com a reflexão.
Segundo o fotógrafo Cartier-Bresson, “no ato de viver, a descoberta de nós mesmos se faz concomitantemente com a descoberta do mundo que nos cerca; mundo que pode modelar-nos, mas também pode ser por nos afetado.” Esse casamento de imagem e letra, essa música visual apresenta uma leitura da experiência urbana, da experiência com o silencioso, que nos convida a esse ato de “descoberta do mundo”, sendo por esse nosso ingresso na possibilidade de afetá-lo e se afetar por esse lugar que nos passa, por vezes automaticamente, enquanto passamos.
Aline Araújo



Badaladas de uma preliminar

Badaladas de uma preliminar é o novo livro de poemas de Fabiano Fernandes Garcez, que reúne três de suas obras anteriormente publicadas, na ordem cronológica cito-as: Poesia se é que há, 2008; Diálogos que ainda restam, 2010; Rastros de um testamento, 2012; também alguns poemas inéditos compõem as páginas desta coletânea. A obra, para além de outras leituras cabíveis, é um reavivamento mnemônico da infância e de outras questões sócio-existenciais, sendo o primeiro tópico o de maior ressonância na sua obra.
Fabiano Garcez arvora na sua memória singular e afetiva a exemplo de outros poetas [Casimiro de Abreu, Manuel Bandeira, Cecília Meireles Mário Quintana, Manoel de Barros, João Paulo Paes] do passado que têm afinidade com a mesma temática. Deste modo reconstituí cenas pretéritas por intermédio do seu olhar de menino tão observador e crítico e desliza pelo tobogã do passado sem recear o manual de conduta alheio e os efeitos produzidos
pelo uso do vernáculo. No poema Palavras soltas ele diz: “Palavras / devem viver soltas por aí / para ir correr / à vista e aos ouvidos”.
A busca permanente do fio de acontecimentos sensíveis à sua formação de pessoa humana suscita à elaboração do próprio álbum que parece tão familiar a quem lê, o poeta faz coletivizar nas suas páginas sentidos e referências que em algum momento tocou durante a infância cada um de nós.
Garcez puxa o novelo, sem pressa, com o vagar das tardes de qualquer infância, o seu verso interpela para si uma sonoridade do cotidiano que não adentra com facilidade no corpo poético, sendo portanto, versos talhados que se movimentam para um efeito desejado e comunicante esperado pelo autor. Ele, deste modo, demonstra apreciar a língua gostosa do povo, aqui menciono e evoco Manuel Bandeira. Ele se vincula e veicula as causas e o uso do idioma das massas e das minorias.
Garcez recorta cenas do cotidiano vivido na infância, espaços e pessoas comuns são retratados assiduamente em sua obra. O poeta atento também ao ambiente doméstico habilita às situações de alimentação como um momento litúrgico que une a família. Destaco o poema Ceia de natal, ele diz: “Preparo os pratos para a ceia de Natal / o peru no forno / arroz e molho”e nos versos abaixo: “O rio que aparece na porta / e pula para dentro da cozinha / ora é calmante, tranquilizante / ora é ensurdecedor”.
No Ceia de Natal é lançada a insígnia da afetividade/ partilha de um momento familiar que encontra ali bela força provocativa e existencial.
Ler Garcez sem desatar os nós internos, sem cingir os pés para saber que por detrás de suas palavras habitam o encantamento e o instante maravilhado, sem estas chaves corremos o risco do tropeço e maldizer na desventura do não entendimento hermenêutico de sua obra.
Jean Narciso Bispo Moura, autor de Dentro de nadir habita o zênite (2018), entre outros e editor da Revista Digital Literatura e Fechadura.
PARA A POESIA
para Carlos Felipe Moisés
Não use copo grande
nem taça bojuda
pois se sorve às doses
por isso o cup shoot
Também não se bebe
no gargalo, de uma vez
pode-se afogar, a poesia
num oceano de folhas que
nada mostram
nada falam
pois só se faz
melodia, logo,
sentido e paz
imagem e mensagem
ao gole seco
em conta
gotas
pingo
a
pin
go
pág. 30
SÉCULO XXI
para Ademir Assunção
À ponta da alta tecnologia
celulares de última geração
na palma da mão
como amuletos
ideias antiquadas
de homens obsoletos
pág. 31
A POESIA QUANDO QUEIMA
para Rubens Jardim
Traz o punho cerrado
golpeando o ar
a voz rouca
pausada, embargada
rasgando, rompendo
a tarde, a noite
no meio da avenida
ou na calçada
A poesia quando queima
ecoa potência
de uma prece
de uma luta
de uma vida
Que em todos
arde, consome ou
explode
pág. 28

VÍNCULOS E RUPTURAS – A poesia brasileira no século XXI e o Modernismo de 1922 sob o olhar da crítica
VÍNCULOS E RUPTURAS – A poesia brasileira no século XXI e o Modernismo de 1922 sob o olhar da crítica, de Fabiano Fernandes Garcez discute duas décadas de produção crítica sobre o que seja a poesia contemporânea a fim de identificar os aspectos históricos e culturais que mobilizam a crítica contemporânea sobre essa produção. A ideia foi pensar a poesia contemporânea no ponto em que se verifica a influência de conceitos modernistas em sua produção e em sua recepção crítica. Para tanto, propusemos um levantamento e posterior análise das narrativas crítico-historiográficas, ou seja, os critérios de escolha empregados pelos estudiosos, tanto para selecionar os poetas quanto os temas. Além disso, procura-se identificar a influência do legado modernista nesse processo, justamente às vésperas do centenário do marco histórico: a Semana de Arte Moderna de 22. Faz-se necessário identificar quais aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais mobilizam essa crítica, tanto para valorizar ou ignorar certos extratos da poesia contemporânea como para verificar o quanto a poesia publicada no início do século XXI é reverberação criativa ou diluição repetitiva da tradição modernista do século XX.
Um grama, apenas, do abstrato

4289°C
para Celso de Alencar
ontem cremamos meu pai
hoje o tenho reduzido
a fragmentos tenuíssimos
todo ele pulverizado
partículas suspensas
em repouso nesta urna
não confesso a minha mãe
que na urna acham-se cinzas
de corpos alheios além
de madeira e cetim
firmo o precioso cântaro
na fúnebre estante
da sala onde jazia
meu avô pai de meu pai
estandarte de morte e pó
onde faço minhas preces
sem me ajoelhar
e onde um dia minhas cinzas
serão repousadas
pág.24
Versos sortidos
“Um grama, apenas, do abstrato” é o quinto livro de Fabiano Fernandes Garcez; um livro dividido em quatro partes: Luto, Afetação, Espanto e Indagações.
As duas primeiras seções do livro – Luto e Afetação – reúnem aqueles que estão entre os melhores poemas de Garcez; poesia em ponto maduro, com temas bem desenvolvidos, trabalhados, e ótimos arremates. Como acontece na poesia oriental, muitos poemas, ao final, encontram uma revelação.
É de se destacar, nesses primeiros quadros, os poemas “Desenho I”, “II” e “III”: vê-se, aqui, uma obra aberta, em progressão, em busca de sua melhor forma, reflexo do próprio autor.
A terceira parte do livro é Espanto: ponto da obra em que poesia e prosa se aproximam, tocam-se, colidem: reverberam o beat do coração e da estrada: encontram o nonsense, o fluxo de ideias, paralelismos psicológicos. Nem tudo tem razão de ser, mas é.
Para o último quarto da obra, Fabiano traz Indagações; poemas que abrem e fecham com interrogações próprias de quem sente as perplexidades e contradições da vida.
Permeando e pontuando todo o livro está a musicalidade dos versos: a melodia das palavras e o ritmo no arranjo entre elas: efeitos que Garcez consegue pelo uso de aliterações e pelo uso de palavras tomadas e decompostas até a raiz.
Embora não haja em “Um grama, apenas, do abstrato” poemas que possam ser classificados como “visuais”, Fabiano faz bom uso da espacialidade dos versos: jogo hábil entre o vazio da página e o campo ocupado pelas letras.
As imagens, no entanto, são pintadas pelas próprias palavras. Há de se ver o “teto da epiderme”, a “jornada em spicatto”, o “dígito/ na pele/ outra” como a “tirar a lingerie da realidade” num “gargarejo de vogais”.
Fabiano é um poeta que conhece poetas: poetas de outros tempos e seus contemporâneos... e sua obra conversa com todos. Mira no que diz e acerta, também, no que não diz. Afinal, a poesia precisa ter um ar de abstração.
César Magalhães Borges
Maio/ 2019
Certo problema
para Ângelo Donizette
Mas que
sentido
o fez
soltar
a vogal
em meio
à imensidão?
Que consciência
soou que
o fez
abaixar
deixar a
conversa manca
e recolher
nas mãos em concha
côncavas
o indefeso inseto
mediante o
esmagamento?
Que gesto
num mundo
em que a vida
é indigesta
mesmo até
de um ser
mais reles
que o som
de pólvora
que o som
de níquel
que o som
surdo da adaga
que range
que rasga
roupa, carne
e penetra
adentrando
cavando fundo
em cada um
a cada noite
a cada amanhecer
Que gesto é esse
que me fez
esse poema
em prol de apenas
um risco
um cisco
uma centelha
Enquanto
a abelha
segue
seu alheio voo
rumo
a horizonte
inconstante
pág. 41
A caverna dos sonhos esquecidos
Um buraco da Rua Augusta
me leva a um abismo no tempo perdido do paleolítico
onde mais tarde nasceria o Reino de França
O sussurro de Herzog desperta noites e noites esquecidas
o aspecto da rocha entalha litros e litros de sonhos
áureos de Ernst Reijseger
Cavalos, alces, bisões
rinocerontes lanosos, ursos e leoas das cavernas
deixam pegadas impregnadas
em minhas pálpebras ancestrais
enquanto estalactites e
estalagmites
enfeitam a escuridão do brilho labiríntico
A parede de pedra
tela anfitriã
relata todo o ocorrido aos meus olhos boquiabertos, satisfeitos pelo triângulo púbico
de coxas a passar a noite com o minotauro
na câmara dos leões
É quando duas dançarinas celebram
à esquerda de meus olhos
a descarga telúrica do calcário
sob o pulsar de meu peito
estacionado na ignorância das mãos científicas
me ponho postado ao perceber que sou eu o artista que manipula a tinta da descoberta
pág.58
Misses caindo em Paris deflagram guerra nuclear?
a moda é inventada invadida pela sede, água que ninguém bebe sujas de sangue as relíquias religiosas luminosas voam atravessando a noite
Flácidos falos ácidos erguem mísseis missionários?
pág.71