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Peixe Grande e suas histórias maravilhosas:

Uma introdução à literatura

 

            É muito comum quando trabalhamos algum texto literário no nono ano, ou mesmo literatura nos três anos do Ensino Médio, ouvirmos de algum aluno: Mas isso realmente aconteceu, professor? Por mais que cansamos de ouvir, dar a resposta nunca é fácil, pois ao dizer ao aluno que não, ele pode perder o interesse pelo livro ou pela narrativa, por outro lado, também não podemos dizer que tudo o que está ali retratado seja realidade.

 

            O que podemos afirmar é que o ser humano tem encantamento e paixão por histórias, a professora e pesquisadora Cândida Vilares Gancho em Como analisar narrativas diz:

 

Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem. As gravações em pedra nos tempos da caverna, por exemplo, são narrações. Os mitos — histórias das origens (de um povo, de objetos, de lugares) —, transmitidos pelos povos através das gerações, são narrativas; a Bíblia — livro que condensa, história, filosofia e dogmas do povo cristão compreende muitas narrativas: da origem do homem e da mulher, dos milagres de Jesus etc. Modernamente, poderíamos citar um sem-número de narrativas: novela de TV, filme de cinema, peça de teatro, notícia de jornal, gibi, desenho animado... Muitas são as possibilidades de narrar, oralmente ou por escrito, em prosa ou em verso, usando imagens ou não. (Pág 7)

 

Costumo, logo no início do ano, trabalhar o filme Peixe Grande e suas histórias maravilhosas uma produção estadunidense de 2003, baseado no livro adaptação do livro Peixe Grande: Uma fábula do amor entre pai e filho, de Daniel Wallace, 1998. Dirigido por Tim Burton e roteirizado por John August, traz um elenco recheado por estrelas como Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Jessica Lange e Marion Cotillard no elenco principal e Helena Bonham Carter, Matthew McGrovy e Danny DeVito, no elenco de apoio.

 

O filme traz, em síntese, duas linhas narrativas, na primeira é a relação de Edward Bloom, Albert Finney, um caixeiro viajante do sul dos Estados Unidos que tem um grande dom para contar histórias e que agora sofre com a fase terminal de um câncer, com seu filho Willam, um jornalista, à espera do primeiro filho, interpretado por Billy Crudup que mora em outra cidade, ao tentar se reconciliar com o pai, após uma discussão ocorrida anos atrás em seu casamento, também busca pelos fatos acontecidos e como consequência tenta descobrir quem verdadeiramente é seu pai. Logo no início do filme Will diz:

 

A verdade é que nunca me vi refletido em meu pai e duvido que ele se veja refletido em mim. Éramos como estranhos que se conheciam muito bem.

 

Esse conflito é gerado, principalmente, porque Edward Bloom além de ser um grande contador de histórias e contar inúmeras histórias que retratam um mundo maravilhoso e místico, seu filho Will se torna um jornalista que prefere escrever sobre fatos e a realidade. Em uma discussão Edward diz ao filho:

 

Somos contadores de histórias nós dois. Eu falo as minhas, você escreve as suas. É a mesma coisa.

 

Esses dois aspectos antagônicos desses personagens vão coloca-los em campos opostos, em uma outra discussão com seu pai, Will diz:

É porque a maioria das histórias não aconteceu. Diz, ainda, que ele nunca lhe contou a verdade.

Edward Bloom lhe responde:

É isso que eu sou, um contador de histórias.

 

Assim Will faz o papel de nosso aluno que questiona o que lê e vai em busca da “verdade” das histórias. Edward Bloom, por sua vez, representa o autor, o criador de histórias. Em uma passagem significativa e engraçada do filme, Edward conta a nora:

 

Não sei se você sabe , Josefine, mas papagaios africanos, nascidos no Congo, falam somente o francês. Tem sorte se conseguir arrancar quatro palavras em outra língua. Se tiver andando por aquelas selvas teria ouvido o falatório num francês muito erudito. Os papagaios falam de tudo: política, cinema, moda, tudo! Menos, religião.

 

Quando Will diz que Josefine, sua esposa, foi ao Congo no ano anterior, Edward, genialmente comenta:

Então você já sabe!

 

Em outra passagem Eduard diz a nora que Will se apega apenas aos fatos e suas histórias não tem nenhum sabor. Dessa forma Edward diferencia os textos jornalísticos dos textos literários que mesmo sendo baseada em fatos, as histórias podem ser embelezadas, engrandecidas pela fantasia, como disse Antonio Candido: a literatura é uma transfiguração da realidade e é justamente a experiência estética que traz o encantamento das histórias, sejam elas lidas ou ouvidas, porque mais que contar o que aconteceu, na esfera literária tem-se a preocupação do como contar. É no campo formal e estético que se encontra aspecto de beleza das histórias, por isso que Edward Bloom diz:

A maioria das pessoas conta a história direta, é menos complicado, mas perde o interesse. 

 

Veja o que a ensaísta Regina Zilberman, no livro Teoria da Literatura I ,diz:

 

Dessa forma, entre o que dizer, o modo de dizê-lo e o significado do que é dito coloca-se um miolo: o mundo criado por um escritor. Édipo pode ter aparecido originalmente em um mito, de circulação oral entre povos da Antiguidade. Da mesma maneira, outras situações presentes em obras literárias são retiradas de acontecimentos previamente conhecidos: as invasões napoleônicas, que constituem o pano de fundo do romance Guerra e Paz, de Leon Tolstói; a viagem de Vasco da Gama à Índia, fazendo pela primeira vez a volta da África, como narra Luís de Camões, no já mencionado Os Lusíadas; a ocupação e a colonização do Rio Grande do Sul no século XIX, como aparece em O Continente, primeiro volume de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Além disso, figuras da história podem protagonizar romances, como o escritor Graciliano Ramos, no romance Em Liberdade, de Silviano Santiago, ou aparecer em segundo plano, como D. João V, de Portugal, em Memorial do Convento, de José Saramago.

 

E não apenas nesses casos fatos e pessoas conhecidas, cuja existência pode ser atestada pela história, estão presentes em obras literárias. Em romances como O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a dramática condição do retirante nordestino está ali representada, assim como a censura e a repressão, resultantes de um regime político autoritário, nutrem uma novela como 1984, do inglês George Orwell.

 

Dessa maneira, a obra literária pode incorporar os mais diferentes elementos da vida cotidiana, da história, da sociedade e da política. Mas tais dados  adquirem sentido quando amalgamados à fantasia do escritor, cuja imaginação criará um contexto para a apresentação desses dados, sugerirá figuras para simbolizá-los, inventará ações para viabilizá-los e suscitará uma linguagem para expressá-los. Sem um imaginário fértil, que faça com que todos os elementos colocados à disposição do escritor interajam e articulem-se, não há criação literária. (pág. 34/35)

 

Will ao se distanciar e não entender o universo do pai também se distancia dele, na tentativa de se reconciliar com o pai , Will, sobre as histórias do pai, diz :

 

E todas são mentiras. Mentiras romanceadas. Histórias são para fazerem crianças dormirem, não são as mitologias elaboradas que o senhor insiste em contar ao filho. Eu acreditei nas suas histórias por mais tempo que devia. Depois quando me dei conta que tudo era impossível, tudo mesmo, me senti um idiota por ter confiado em você. O senhor é pior que o Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa juntos. Não mais encantadores e irreais.

 

Will, por sua formação jornalística, vai atrás da verdade, dos fatos que geraram essas histórias. Ao ser questionado se ele ama o pai, diz a Josefine:

Vê se entende, até a adolescência ele ficava mais na rua que em casa. Comecei a desconfiar que talvez, ele tivesse uma segunda vida, em outro lugar. Outra família, outra casa. Ele nos deixa e fica com eles. Ou então, vai ver que não existe uma segunda família, ele nunca quis ter uma família. Fosse o que fosse ele gostava mais de sua segunda vida e a razão por contar histórias é que ele não suporta esse lugar chato.

 

Neste momento, ao falar do pai, Will também discorre sobre a catarse, uma das faces de contarmos ou ouvirmos histórias, ou seja, da literatura, que além da fuga de nosso lugar chato que é a nossa triste realidade, que nos tira o prazer e nos oprime, nos condenando a uma vida de obrigações, regras, prazos e problemas, nos traz prazer e satisfação.

 

As histórias, e a literatura, nos faz  viver as histórias de outrem, de sentir as emoções e os sentimentos dos personagens, ao sentirmos emoções alheias, liberamos as nossas. Dessa forma, também conseguimos nos purificar, pois não só liberamos  sentimento e emoções, mas somos capazes de  entendê-los, ao experimentá-los, ou seja, vivenciá-los, mas sem vivê-los.

Além disso, a literatura, as histórias, além de nos maravilhar, também nos faz pensar, refletir sobre essa mesma realidade que tanto nos oprime. Roland Barthes, em Aula, diz:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. (pág. 17/18)

 

Chegando ao terceiro ato do filme, Will se depara com um quarto em que o pai guardava algumas coisas e alguns documentos do passado, e lá encontra provas das histórias do pai. Neste momento sua mãe lhe diz:

Nem tudo que seu pai diz é invenção.

 

Will percebe, neste momento que as histórias do pai tinham algum tipo de fundamento, mesmo não sendo integralmente reais, tinham verossimilhança

 

Ao ir a Especter, cidade vizinha à cidade natal do pai, Will conhece Jane Hill, uma das inúmeras personagens das histórias de Ed, ao vê-lo em sua porta Jane diz:

 

Você tem uma imagem de seu pai e seria errado eu tentar mudar. Ainda mais de tanto tempo.

Will, responde o seguinte:

Meu pai falava de aventuras que nunca teve, mas aposto que teve inúmeras aventuras de que nunca contou. Eu estou querendo amarrar as duas partes.

Jane conta a Will as duas vezes que esteve com Edward e termina dizendo:

Já a garota, dizem que ela virou uma bruxa e acabou louca. Já faz parte do folclore. E a história termina onde começou.

Will fala:

Pela lógica, você não poderia ser a bruxa velha, porque você ainda era jovem.

É, mas parece lógico pela ótica do seu pai. Responde ela.

Sobre verossimilhança vamos fazer uso mais uma vez dos conceitos de Teoria da Literatura I, de Regina Zilberman:

 

Observe-se que o termo criação significa igualmente “invenção”, e a inventividade é o principal instrumento de um escritor. A inventividade é fecundada pela imaginação, povoada por um imaginário que cresce à medida em que se avolumam as experiências do próprio escritor. A imaginação está presente nas narrativas mais fantasiosas e também nas mais realistas: ela nunca estará fora de uma obra literária.

Contudo, não é imaginação que garante o literário, mas a coerência com que se apresenta. Não que o escritor não possa exacerbar a própria fantasia, esticando- a ao máximo. Mas quando a traduz em palavras ele não pode perder a verossimilhança, porque precisa convencer o leitor de sua “realidade”, mesmo que ela seja fantástica.

A verossimilhança engloba dois processos. O primeiro deles pode ser chamado de metafórico, pois, de alguma maneira, o que encontramos em uma obra literária precisa guardar alguma semelhança com o que via de regra acontece. O segundo relaciona-se à sintaxe, pois diz respeito à lógica da disposição das parte de uma obra, o que supõe coerência e faculdade de persuasão e aceitação porquem a acompanha pela leitura ou pela audição.

 

Will que passa o filme todo atrás da verdade por trás das histórias de seu pai, só entende o valor dessas histórias e seu pai, quando o médico da família, Doutor Baret, lhe conta sobre o dia de seu nascimento:

 

Sua mãe deu entrada por volta das três da tarde, o vizinho a trouxe, porque seu pai tinha negócios em outra cidade. Nasceu antes do tempo, mas sem complicações. Foi de parto normal. Seu pai lamentou não estar presente, mas não era costume maridos entrarem  na sala de parto naquela época. Então não sei que diferença faria se ele estivesse lá. Essa é a história de seu nascimento, nada impressionante.

 

Will diz que gostou dessa versão, mas Baret diz:

Imagino se eu tivesse de escolher entre a versão oficial e a elaborada história sobre um peixe e uma aliança, eu ficaria com a versão mais impressionante, mas este sou eu.

 

Agora que Will já vê com mais simpatia as histórias do pai, e por consequência o entende, resta a ele receber o bastão de seu pai e assumir o seu lugar e talvez a parte mais comovente de todo o filme, Will recebe do pai a incumbência de lhe contar como ele morre, uma vez que uma das histórias de Edward era o fato de visto a própria morte no olho de uma bruxa.

 

            Ao começar a contar Will ainda está titubeante, diz que essa história o pai nunca lhe contara, mas aos poucos vai se entregando a narração e faz uma grande história de despedida ao pai.

 

            Neste momento vemos o grande criador e contador de histórias no papel de ouvinte passivo e Will que tem o arco dramático em busca da verdade, rendido ao universo fantástico do pai, e principalmente dado continuidade a ele e suas histórias. Termina dizendo:

 

            O senhor se torna o que sempre foi: um grande peixe do rio. É assim que acontece.

 

            Na cena final do longa, vemos o filho de Will contando ao amigos os feitos do avó e ao fundo, em off, Will nos diz:

            Um homem conta suas histórias tantas vezes que se mistura a elas e elas sobrevivem a ele e é desse jeito que ele se torna imortal.

 

            Assim as histórias vão ganhando vida no futuro, talvez seja por isso que continuemos, nós professores de literatura,  a falar sobre os grandes autores, ler seus livros e contar suas histórias, tal como Will, aquele aluno que questiona sobre a realidade, seja o mesmo que mais tarde vai dar continuidade como leitor, ouvinte ou contador de histórias que, hoje em dia, tanto faz que elas estejam nas bocas, nos livros, nos palcos ou no cinema. O importante é que elas façam sempre parte de nossa vida, para torna-la uma experiência muito mais bela e comovente.

 

 

Choque de Cultura:

A crítica na inversão dos estereótipos sociais

 

Choque de Cultura é um programa humorístico onde um apresentador Rogerinho do Ingá (Caito Mainier) e três motoristas de transporte alternativo: Renan (Daniel Furlan), Julinho (Leandro Ramos) e Maurílio (Raul Chequer) discutem e comentam filmes e séries. O programa é produzido pela TV Quase, pode ser assistido no canal de cultura Geek Omelete no youtube. Cada programa tem em média oito minutos e possui grande audiência, o que o fez um grande sucesso e destaque do humor nestes últimos meses.

 

Dentre outros, o grande mérito do programa e, talvez, a fonte do sucesso, está no roteiro inteligente. Apesar de parecer uma conversa bem descontraída e descomprometida os quatro atores, e também roteiristas, improvisam muito pouco, cada palavra dita está roteirizada.

 

Sátira Crítica

 

O apresentador, Rogérinho do Ingá, juntamente com os três convidados, Renan, Julinho e Maurílio, falam sobre um assunto que não dominam, pelo contrário se valem do discurso ordinário, e muitas vezes equivocado, ou do senso comum, exceção ao Maurílio, um pseudointelectual, que tem um conhecimento técnico um pouquinho maior que os outros participantes, transformam cada episódio em uma potente sátira crítica aos programas esportivos, onde o apresentador e alguns convidados debatem e discutem os jogos e lances polêmicos da rodada do fim de semana.

 

A crítica já começa nos casting do programa, pois os convidados deveriam ser especialistas: cineastas, atores, diretores ou críticos, mas, em verdade, são motoristas de van, ou como eles mesmos gostam de se chamar: Pilotos. Logo podemos supor então que O Choque de Cultura nos faz pensar que muitos programas que assistimos podem fazer a mesma coisa, trazer como especialistas pessoas que não são, só o fato de estarem no programa já os legitimam. Como exemplo, no episódio em que discutem e analisam o filme 2001: um odisseia no espaço, Renan corrige Maurílio dizendo que o nome do retângulo mágico, objeto extraterrestre de mistério, não é Monolito, mas sim metáfora, alusão a figura de linguagem. Dessa forma Renan corrige erroneamente o colega que estava certo.

 

Inversão dos estereótipos sociais e representatividade

 

O sucesso do programa na internet, em média 600 mil visualizações por vídeo, prova que o politicamente correto não está acabando com o humor, como afirmavam alguns humoristas e jornalistas. O Choque de Cultura mostra que o politicamente correto pode acabar com o mau humor, aquele com base no preconceito, na ridicularização, sobretudo das minorias, e que também reforçam os preconceituosos estereótipos sociais como: o caipira e a mulher bonita, geralmente loira, mas desprovida de inteligência.

 

O roteiro do programa além de não se valer desses estereótipos e muito menos os reforçar, vai além, pois os subverte, de forma que quem é ridicularizado é a parcela da população autodenominada  “cidadão de bem” que geralmente é caucasiana, conservadora, preconceituosa, usuária de privilégios sociais, bem como se vale de uma retórica violenta, como base argumentativa centrada no senso comum, dessa forma não utilizam de argumentos analíticos ou históricos, muito menos de interpretação e/ou compreensão de dados, índices ou estudos, centrando seus argumentos em julgamento simplórios e maniqueístas, por exemplo: bem/mal, certo/errado, alegre/triste, forte/fraco, verdade/mentira.

 

Os figurinos de cada integrante representam essas pessoas, não por acaso o apresentador Rogerinho do Ingá, na maioria dos programas veste uma camiseta da seleção brasileira de futebol, que virou símbolo dos manifestantes a favor do impeachment da presidenta Dilma

 

Senso Comum, Deus e Família

 

Utilizaremos como exemplo o episódio: Explicando 2001 uma odisseia  no espaço, no qual os integrantes comentam o clássico da ficção científica de Stanley Kubrick.

 

O programa se inicia com o comentarista Maurílio o apresentando, como forma de pedido de desculpa por ter tomado um soco no rosto do colega de bancada Julinho da Van no programa anterior, mas é retirado a força do posto pelo real comandante e apresentador, Rogerinho do Ingá, dizendo estar: “tudo errado, sem energia nenhuma”, pois assim “o jovem vai mudar de canal”, dessa forma podemos inferir que para Rogerinho do Ingá, em uma análise generalizante, superficial e preconceituosa, jovem gosta de programas dinâmicos. Ao dizer isso o apresentador utiliza o argumento de Senso comum que sempre traz uma afirmação que representa um consenso incontestável, por ser de conhecimento universal, para isso se valem da figura unânime de Deus, momento em que Julinho inicia sua fala e saúda quem os assiste dizendo: “Muito boa noite companheiro que está em casa assistindo a gente, graças a Deus!” Outro ponto que merece destaque é a presença da família, principalmente na citação do personagem filho do Renan, mesmo que este nunca tenha aparecido e sua citação é sempre motivo de risos, pois sempre está hospitalizado ou se recuperando de ferimentos devido aos maus cuidados do pai.

 

 

Maniqueísmo

 

A maioria dos argumentos tanto do apresentador como dos comentaristas tem base maniqueísta. Como exemplo podemos citar o início do programa quando o apresentador, Rogerinho do Ingá, explica que o filme analisado é um filme “velho”, assim: “cabeça e culto”, e ainda completa dizendo que “hoje os filmes não são mais assim, hoje o filme é para você assistir e pronto. Que é o certo! Porque se você quiser pensar, você vai jogar um RPG”. O quadro do programa: Pontos Fortes e Pontos Fracos nos reforça esse contexo.

 

Utilizam-se de conceitos do cinema de entretenimento para generalizar todo tipo de cinema, por isso as franquias cinematográficas mais exaltadas são Velozes e Furiosos e Transformes. Usam como referencial a televisão, apesar de estarem na internet, assim abusam das citaççoes às redes de TV aberta como: Globo, SBT, Bandeirantes etc., como também artista dessas emissoras como: Wolf Maia, Faustão e Sergio Malandro. Também emulam a postura dos apresentadores de programas de jornalismo de final da tarde, fazendo uso de violência discursiva, frases imperativas e bravatas como: O Brasil é o país do imposto! Ou a inda a muito engraçada: Sou contra a inteligência!

 

Como estes personagens não se preocupam com a análise crítica ou até mesmo uso adequado de termos, definições ou conceitos, tornando certo tudo aquilo que é dito com veemência ou violência, como exemplo podemos citar o momento em  Julinho da Van no quadro Pontos fortes e Pontos fracos diz que um outro ponto fraco do filme é ter nave lenta, mas ao invés de argumentar ou exemplificar seu ponto de vista, repete o que foi dito por mais de duas vezes. Outro bom exemplo é o momento em que o apresentador, Rogerinho do Ingá, diz que uma nave é “um foguete e um volante.  Acabou! Não tem que botar computador e se você quiser anotar alguma coisa no espaço você leva uma caneta, até porque uma caneta não vai se revoltar e matar todo mundo” ou ainda nas falas do Renan “quando você chega com um pedaço de pau numa briga a outra pessoa quer logo conversar. É a arma do diálogo!”

 

Em recente visita de Raul Chequer e Leandro Ramos ao programa Pânico, rádio Jovem Pan, quando um dos integrantes afirma que o humor sempre ofende alguém, Raul contesta e, seriamente, diz: “Eu acho muito merda usar de humor para perpetuar preconceito.” Dessa forma o Choque de Cultura prova que o humor pode se reinventar e atualizar e a base para isso é um roteiro centrado na crítica e na inversão dos estereótipos e, principalmente, nunca duvidar da inteligência do seu público.

 

 

 

 

 

A punição da vigia

 

Martín Kohan é um dos nomes mais relevantes da literatura contemporânea argentina, porém apenas três de seus romances foram traduzidos e publicados aqui no Brasil: Duas vezes junho, Segundos Fora e Ciências Morais.

 

Publicado em 2007 na Argentina e no Brasil em 2008, Ciências Morais é ambientado no Colégio Nacional de Buenos Aires, no período da Guerra das Malvinas.

 

Ciências Morais não traz grandes inovações estéticas, por causa de extensas descrições, linguagem cuidada e extremamente formal e a utilização de repetições de palavras para prolongar a atmosfera de suspense, poderia ser considerado um bom representante do Realismo do século XIX: (…) O senhor Biasutto recua. Recua em sua atitude, mas também fisicamente: baixa as mãos e retrocede um metro ou dois. (…) O inusitado é que alguns títulos dos capítulos, dos dezesseis, desse romance psicológico, além de servir como tema ao seu conteúdo, se repetem em outros: Juvenília, Sétima hora e Ciências Morais, nomeiam pelo menos três capítulos cada. Kohan habilmente apresenta o ambiente escolar com regras rígidas, disciplina militar e o silêncio como ponto de ordem para metaforizar o país marcado por uma impiedosa ditadura que em nenhum momento dá as caras, mas é perceptível seu espectro negro pairando sobre tudo e todos. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault, afirma:

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.

 

María Teresa, personagem central, vive só com a mãe que chora a partida do irmão para o front da batalha. Em casa, pela manhã, recebe cartões-postais do irmão com frases incompreensíveis ou em branco, mas para acalmar a mãe inventa mensagens tranquilizadoras.

 

No colégio María Teresa é inspetora da oitava série 10, se esforça para impressionar o sr. Biasutto chefe dos inspetores, por isso não quer apenas fiscalizar as regras do colégio, quer buscar a exceção, assim escondida no reservado, faz vigília no banheiro masculino, metáfora para a intimidade, em busca de algum aluno fumante. Sobre isso Foucault diz:

O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente discreto, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio.

 

É no silêncio que María Theresa passa maior parte do seu tempo, à espreita. Kohan mostra habilidade incrível em dar ao leitor a oportunidade de observar o crescimento desta personagem enquanto ser, dos olhos vigilantes e punitivos ela vai ganhando consistência, recheio, em sua clausura diária em busca de transgressores, do nojo e da repulsa inicial começa a sentir um certo contentamento por está ali, não só pela vigia da norma, mas também pelo desvio dela, sente imenso contentamento só por estar dentro desse lugar proibido para moças de boa família.

 

O fato de ter uma posição cuja função traz em seu bojo o poder de observar os garotos da oitava série 10 de forma tão próxima faz com que tenha sonhos com a panturrilha de um aluno que advertidamente suspendeu suas calças um pouco mais que o necessário no momento de averiguação das meias e a nuca de outro quando verificava o corte de cabelos. Esses sinais de recalque sexual aos poucos se transformam em prazer viciante e costumeiro, ao ponto de regojizar-se ao urinar ao mesmo tempo em que um aluno.

 

Dias após ser convidada por Sr. Biasutto, para tomar um café em um bar longe da escola, quando estava em meio a sua prazerosa trincheira diária em busca de transgressores fumantes, o poder disciplinar absoluto do Sr. Biasutto, do colégio, do país, da ditadura lhe invade rompendo sua intimidade, sua castidade e punindo sua conduta inadequada. Por sua posição María Teresa tinha de saber que jamais poderia misturar prazer e trabalho, em Vigiar e Punir, lê-se:

Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo, da maneira de ser (grosseiro, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos, não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações.

 

Toda a estrutura repressiva acaba por se interiorizar em cada indivíduo responsável por zelar por essa repressão, porém cada personagem traz em seu íntimo inúmeros recalques ou frustrações, María Teresa, por exemplo, mesmo sendo molestada parece sair frustrada por não ser estuprada corretamente, se é que isso é possível.

 

A Argentina encarou sua ditadura militar, não a colocou para baixo do tapete, como fez o Brasil, talvez por isso que seja tema recorrente de sua literatura e, principalmente, de seu cinema. Ciências Morais é leitura imprescindível e obrigatória para aqueles que vão à Av. Paulista pedir a volta da ditadura militar, aos outros resta vigiar, pois como diria Brecht: A cadela do fascismo está sempre no cio!

 

 

 

À espera do dia em que os chineses serão muito melhores

 

Reprodução é o mais novo romance de Bernardo Carvalho, reconhecido pela crítica como um dos nomes mais relevantes do atual cenário literário. Editado em 2014, vencedor do Prêmio Jabuti. Dividido em três capítulos, A língua do futuro, A língua do Passado e A língua do presente, em todas eles o leitor tem acesso a apenas uma parte do diálogo, aos moldes de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, porém o leitor não faz o papel do interlocutor, mas ele é capaz de inferir as partes omitidas do diálogo.

 

O primeiro e o terceiro capítulos se caracterizam por um quase infinito monólogo do personagem, estudante de chinês. No segundo o estudante de chinês ouve uma conversa na sala ao lado, porém, quando se chega ao terceiro capítulo, a existência deste diálogo é colocado em dúvida, o leitor não sabe ao certo se ele realmente existiu, o delegado se recusa a confirmá-lo, há a possibilidade de que não passou de uma alucinação auditiva da mente paranoica do estudante de chinês. Bernardo Carvalho mostra sua imensa habilidade ao arquitetar a estrutura do romance, o narrador, em terceira pessoa, aparece em poucas ocasiões e de maneira bem sutil e elegante, registrando cenas rápidas e fortes, aos ouvidos e à memória do leitor ficam apenas os comentários reacionários e inapropriados do estudante de chinês, que crê, em uma espécie de determinismo capitalista, que com a chegada do imperialismo chinês no mundo, onde todos terão que se curvar “a uma outra forma de inteligência mais sofisticada que a nossa” e ele, por falar chinês, estaria no topo da cadeia alimentar. O estudante de chinês parece a versão atualizada do personagem Marquinhos, do antigo programa Sobrinhos do Atayde, da 89FM a rádio Rock, em que glorificava os EUA e tinha como bordão: Os americanos são muito melhores.

 

A leitura de Reprodução é difícil, tortuosa, cansativa, escrito em parágrafos longos e quase sem interrupções do fluxo textual, com repetições de frases e sintagmas, às vezes o leitor se vê perdido em um labirinto verborrágico, o que dificulta muito a leitura rápida, desatenta e entrecortada, típica de nossa vida contemporânea, em um jorro discursivo recheado de jargões, frases feitas e do senso comum recortados e colados de jornais, revistas semanais, blogs e redes sociais, também típica de nossa vida e sociedade contemporâneas, que em nome da liberdade de expressão, fala-se de modo descomprometido e irresponsável. É desse modo que o estudante de chinês esbraveja contra o delegado que o prendeu em uma sala da Polícia Federal do Aeroporto Internacional de Guarulhos, quando iria para China para se aprofundar no estudo do idioma, é acusado de ligação com a ex-professora, após um breve e repentino encontro no aeroporto. Esta sala pequena e sem janelas, pode ser a representação deste indivíduo confinado em seu próprio mundo, que mesmo recebendo informações, é incapaz de analisá-las e digeri-las. Construído de modo extremamente realista e verossímil, o estudante de chinês mais parece um amigo do facebook, é capaz de “curtir”, após seu próprio comentário, falar algo e se desculpar logo em seguida, ou mesmo se contradizer. Não seria de se estranhar encontrar em sua página do Facebook diversas selfies em plena Av. Paulista, nos protestos contra a presidenta, vestido uma camisa da CBF e da Nike e portando um cartaz a favor do impeachment.

 

A delegada, personagem a quem o estudante de chinês ouve na sala ao lado, indignada pelo que foi escrito em um relatório feito pelo psicólogo que diz que ela gosta de ser humilhada, gosta de ir à igreja, frequentou disfarçadamente a Marcha para Jesus em favor do Brasil e participa de clubes de encontros. Com um discurso, também, contra tudo e contra todos, mostra que todos os papéis, laudos e relatórios da Polícia raramente são lidos. É pela boca dela que Bernardo Carvalho faz críticas ferrenhas contra romances, o leitor da prosa bernadiana percebe que são destinadas a um tipo de romance comercial e de entretenimento, diferente do que tem em mãos. A delegada coloca-se como antagonista da escrivã Márcia, única personagem brasileira com nome, “branca e burra, burríssima, só serve para ler romances.” “Basta eu entender qual é a do personagem para perder o interesse.” Nesta frase da delegada Bernardo Carvalho deixa uma pista ao leitor do porquê estes personagens percorrem por um terreno ora pedregoso, ora arenoso, que põe o leitor a persegui-los, com a sensação de estar seguindo um cego por um labirinto. É também neste segundo capítulo que questões linguísticas e comunicativas sãos bastante exploradas: “E uma língua que só uma pessoa fala ainda é língua?” “no momento em que uma língua tem de explicar, em outra língua, o que acabou de dizer, ainda é língua?” “Se eu conto uma piada e você não entende. Ainda é piada?” “Posso dizer que a gente ainda fala a mesma língua?”. Todos esses questionamentos surgem da leitura de relatório de um caso em que um índio, último representante de uma tribo que “fala a única língua capaz de dizer Deus”, é morto por um missionário, não fosse o tom de oralidade empregado e a opção pelo diálogo, teríamos um bom ensaio sobre os temas.

 

O leitor que consegue chegar ao fim desse Reprodução tem dois prêmios. O primeiro é o prazer de completar um percurso sinuoso. O segundo é de se render a arquitetura rebuscada e cheia de armadilhas da prosa de Bernardo Carvalho que propõe uma cisão entre o conteúdo atual, contemporâneo e a estrutura calcada em um experimentalismo moderno, por vezes hermético.

 

 

 

 

 

 

Um tecido de narrativas

 

Joca Reiners Terron nasceu em Cuiabá, foi fundador da editora Ciência do acidente, é colaborador do jornal Folha de S. Paulo, tem várias obras de dramaturgia, publicou contos, poesia e romances, entre eles: Não há nada lá, 2000, prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira da Revista Cult; Guia de ruas sem saída, 2007, Bolsa Petrobras de Criação Literária; Do fundo do poço se vê a lua, 2010, Prêmio Machado de Assis de Romance da Fundação Biblioteca Nacional.

 

O bairro do Bom Retiro é o cenário de seu mais novo romance, A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves, 2013, publicado pela Companhia das Letras, pois é lá onde se concentra a maioria das histórias de alguns de seus moradores, inclusive a do insone escrivão da polícia civil, que conduz o foco narrativo. 

 

Em todos os povos há a tradição de contar histórias, assim se preserva a memória, tanto pessoal, quanto coletiva. A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves é uma narrativa policial onde são costuradas outras narrativas. Como um verdadeiro griot o escrivão transforma os depoimentos que registra em um mosaico de histórias cotidianas, lendas, fábulas, o imaginário popular que cerca alguns personagens e lugares do bairro em uma ficção memorialista, carregada de oralidade. As histórias desses depoimentos são confrontados com as lembranças de fatos, personagens e lugares do bairro. O escrivão sobrecarregado com o emprego noturno na delegacia e a função de cuidar do pai durante o dia, passa a tomar remédios para inibir o sono, porém o remédio o deixa em um estado em que, por vezes, não consegue separar a realidade das alucinações, fazendo com que um simples acontecimento se transforme em uma aventura ora épica, ora surrealista. 

 

Quase todo personagem conta ou ouve histórias: O pai, velho e doente, pede ao escrivão que reconte as fábulas do Esopo, porém ele conta, apenas, os depoimentos que ouvia na delegacia. Além disso alguns dos personagens se encarregam de contar histórias: o entregador coreano que inventa ter uma namorada, a Senhora X que lê para a Criatura uma narrativa sobre um Leopardo das Neves que se apaixona por uma voz humana, o médico que fala sobre os índios americanos e bisontes, entre outras.

 

A palavra Retiro, segundo o dicionário da Academia Brasileira de Letras, significa, entre outras coisas: onde se vai em busca de descanso e tranquilidade, local se recolhimento de religiosos ou leigos para o exercício da fé, o que torna irônico o fato de o bairro ser o pano de fundo do romance, pois as personagens Criatura e Senhora X passam o tempo todo confinadas em um velho casarão e na única vez que saem é o fatídico dia do crime.

 

No território das antigas confecções, as relações dos personagens são tecidas por alguns temas como o preconceito e o estigma dos imigrantes, a efemeridade e mutação urbana e étnica que o bairro vem passando nas últimas décadas por conta das ondas de imigração; primeiro os judeus, depois os coreanos e por fim a mão de obra barata dos bolivianos, forçando a todos trabalharem e conviverem no bairro.

 

Hoje em dia, devido a essa pluralidade étnica o Bom Retiro passa por uma espécie de falta de identidade, da mesma forma que o escrivão, filho de um judeu com uma negra, sofre por não se reconhecer no pai, por outro lado essa miscigenação é o que, talvez, o livra da porfiria, doença de sua irmã.

 

Toda pessoa, além do prazer, sente necessidade de ouvir ou contar histórias. A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, apresenta um tecido de inúmeras narrativas, que são alinhavadas por um inovador romance policial. 

 

 

A maça envenenada: A Ópera Rock

Michael Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, foi editor-chefe da revista Bravo. É colunista da Folha de São Paulo. Publicou os romances: Música Anterior (2001), Longe da água (2004), O segundo tempo (2006), O gato diz adeus (2009), Diário da queda (2011) que foi publicado em onze países. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles Erico Verissimo (2001), Bravo Prime (2011), Portugal Telecom (2005, 2007 e 2012), Zaffari&Bourbon (2005 e 2012), Jabuti (2007 e 2014) e São Paulo de Literatura (2012 e 2014).

 

Seu mais novo romance A maça envenenada (2013) poderia ser um disco de rock, mais precisamente uma ópera rock/grunge, com vocais ora sussurrantes, ora gritados, guitarras com três acordes, pedais distorcidos, alternando dedilhados limpos, linhas de baixo graves e sem muitos groovie e uma bateria abusando dos pratos. A última faixa, porém, seria uma balada acústica, violão e voz, em lá menor, uma canção triste sobre como tudo poderia ter sido diferente, mas não foi.

 

Composta por cento e um capítulos curtos, em uma linguagem rápida, muito perto da oralidade, alguns deles são divagações sobre a possibilidade de um futuro ou sobre o que aconteceu no passado. De forma desfragmentada quatro histórias se cruzam: a do narrador que conta sua vida a partir de duas linhas temporais: época que serve o exército no pelotão da CPOR e a que vive em Londres; a de Immaculée Ilibagiza, uma jovem Tútsis estudante de engenharia, que sofre com a guerra civil em Ruanda e mais tarde relata esses dias em um livro; a de Valéria a primeira namorada do narrador e os últimos anos de vida de Kurt Cobain, líder do Nirvana, que comete suicídio no início de abril de 1994.

 

Essas histórias são o centro de outras micro histórias, porém o que liga tudo é o namoro do narrador com Valéria que também é vocalista de sua banda e a possibilidade de irem juntos com o amigo Unha, o baterista, para o show do Nirvana, no Hollywood Rock de 1993.

 

Os quatro principais relatos poderiam ser divididas em dois grupos: Primeiro - o personagem que tem sua vida completamente mudada por uma tragédia alheia. Segundo - o personagem que toma para si a decisão de pôr fim a sua própria vida e por consequência muda a vida dos outros. Veja esse trecho:

 

Eu imagino como Frances Bean leu as matérias anos depois, o que diziam do pai, o que diziam da mãe e o que diziam dela mesma. Imagino ela na escola. Numa festa em que começa a tocar uma música do Nirvana. Numa lanchonete como os amigos e alguém se aproxima e pergunta timidamente, você é mesmo quem estou pensando? E outra pessoa se aproxima timidamente e pergunta se ela sabia das disputas por sua guarda, o serviço de assistência a menores de Los Angeles, Kurt Cobain declarando numa entrevista que tinha pavor de que a vida da filha acabasse como a sua. (...) 

 

Pág. 60

 

O suicídio de Kurt é o grande fantasma que ronda e permeia toda a narração, servindo como um paradigma comparativo para as outras histórias, como o capítulo 45 em que é traçado um paralelo com a história de Immaculée, ou no capítulo 83 em que o narrador se questiona sob a possibilidade de Valéria ter como maior ídolo Immaculée ao invés de Kurt.

 

O que realmente leva uma pessoa a cometer suicídio? E uma pessoa que tem tudo, que é um grande ídolo do Rock n`Roll? Que tem dezenas de milhares de dólares? O que leva alguém, na casa dos vinte anos, tirar sua própria vida? Coragem? Covardia? A psicologia barata, aquela de porta de boteco, diz que todo suicida que chamar à atenção ou culpar os outros por sua desgraça. Na página 102, o narrador afirma:

 

O suicídio é uma traição aos outros e a si mesmo, ao que você poderia se tornar no futuro, uma pessoa diferente que nunca poderá existir porque a linha foi interrompida antes que os erros fosse corrigidos. (...)

 

O engano na tradução na letra da música Drain You, do Nirvana, em um cartão postal, página 98. Engano proposital ou apenas um erro grotesco? A resposta pode ser a chave para e outras respostas. Todo suicida premedita sua ação? Ou o ato é por impulso? Uma tristeza impossível de aguentar? Um sonho barato romântico que vê na fuga para a morte a única resposta possível?

 

Kurt Cobain foi, talvez, o último grande ídolo que além de não ter se vendido, soube usar, criticar, rir e abusar da grande indústria do entretenimento, que nos anos noventa ainda posava de a namoradinha do papai, agora vinte anos depois é a terrível madrasta e faz questão de ser confundida com cultura. O show de 1993 no Brasil, pode ser considerado o pior show da banda por um lado, por outro, um show para acabar com a imagem de uma banda pop da moda. Kurt em todos os shows era irônico com o fato de seu grupo ter vendido milhões de cópias do seu segundo disco, ainda vinil, e ser uma espécie de moda passageira. No Acústico para a MTV antes de tocar a primeira música da noite diz: "Essa música é de nosso primeiro disco que a maioria aqui não conhece."

 

Esse espírito sádico/irônico estava presente em Valéria o que desconcerta, aproxima e repele o narrador, transformando seu primeiro namoro sério em um relacionamento problemático, permeado por bebidas, drogas, sexo, cenas de ciúmes, crises existenciais, desgraça familiar e Rock n´Roll.

 

Ao se encaminhar para o final, o romance causa uma melancolia nos leitores, principalmente aqueles que tiveram a sorte de ter dezesseis, dezessete ou dezoito anos em noventa e quatro e também ficaram entristecidos e estarrecidos com o suicídio de alguém tão próximo e tão distante e também ficaram sem chão e perdidos ao se ver solitários e sem sua referência no mundo da música e na vida e que uma ato estúpido, todo suicídio é tão estúpido, interrompeu não apenas uma vida, o que já seria o bastante, mas inúmeras ao seu redor e que isso pode ser sentido de forma avassaladora ou não, apenas em um exercício, nada saboroso, de pensar, avaliar e ligar fatos aparentemente desconexos, mas que refletiram por toda sua vida.

 

A maça envenenada não traz de volta ao centro do palco apenas os anos noventa, mas também a teoria do caos, aquela que diz: "Algo tão pequeno como o bater das asas de uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do mundo”, talvez seja esse lado incontrolável da vida que nos deprime e nos anima a continuar vivendo, da mesma maneira nos faz cortar os pulsos ou encostar uma espingarda na boca e apertar o gatilho.

 

 

Qual é a maior História do pai da história?

 

 

Ilan Brenman é um autor brasileiro de literatura infantil, nascido em Israel e filho de argentinos. Publicou mais de 60 livros infantis e juvenis. Ganhou os prêmios mais importantes da categoria, como por exemplo: melhor livro para Crianças 2011, O Alvo Ed. Ática, melhor livro de reconto 2009, 14 Pérolas da Índia, Ed. Binque Book, melhor livro-Imagem 2010, Telefone sem Fio, Ed Cia da Letrinhas, além de ter ganho diversas vezes o selo “Altamente Recomendável” pela Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil.

 

Em 2013 lança o infanto-juvenil, Histórias do pai da História, uma homenagem ao grego Heródoto, considerado o pai da história. É divido em três partes: A história da História, a primeira parte, onde reconta quatro contos de Heródoto partindo de perguntas títulos: Qual é o homem mais feliz do mundo? Qual é o homem mais astuto do mundo? Qual é o homem mais sortudo do mundo? E o último Qual é o povo mais antigo do mundo? Nestas histórias Brenman apresenta o mundo dos povos antigos, onde sábios conhecem terras distantes, reis e príncipes ganham e perdem batalhas. A segunda parte, Caderno de curiosidades do Heródoto, apresenta em textos bem curtos, sete fatos curiosos sobre as viagens de Heródoto pelos diversos povos da antiguidade. Na última parte, Coisas dos pais da história, texto de Lilia Schwarcz, um apanhado biográfico do historiador grego.

 

As ilustrações, a cargo de Anuska Allepuz, abrem cada uma das histórias, mostram uma técnica mista de desenhos e colagem, juntamente com um traço delicado e elegante, que ao mesmo tempo dão vida e graça aos personagens retratados. Ao final do livro a ilustradora escreve como foi o processo de pesquisa e composição de algumas ilustrações. Já que se trata de um livro de histórias, nada mais justo que a história do próprio livro em questão.

 

Nos contos da primeira parte Ilan Brenman utiliza um texto ágil, graças aos bons diálogos, e a oralidade, mesmo com personagens de nomes incomuns e até mesmo difíceis, como: Rampsinito, Cambises, Psamético e Polícrates.

 

Nas Histórias do pai da História é possível encontrar a boa literatura infantil, sem o “politicamente correto” e, principalmente, sem o ideal moralizante, o que faz com a criança mais inteligente se interesse pela leitura e pelo desiquilíbrio que a verdadeira leitura pode proporcionar.

 

 

 

 

Do drama ao caos

Lourenço Mutarelli é um artista completo. Formado em Artes, trabalhou nos estúdios de Maurício de Sousa, começou a produção de quadrinhos em fanzines. É dramaturgo, reuniu suas peças em O Teatro de Sombras, seu romance O Natimorto foi adaptado para o teatro por Mário Bortolotto. Romancista, já publicou mais de seis romances, entre eles O cheiro do Ralo que ganhou as telas do cinema, onde atuou como roteirista e ator, trabalhou também como criador de arte do filme Nina (2004). Foi curador da Ocupação Jards Macalé do Instituto Itaú Cultural.

 

Ganhou inúmeros prêmios de melhor desenhista do Brasil. Publicou suas tirinhas na revista Animal, colaborou com Glauco Mattoso e Marcatti em dois números da revista "Tralha", publicou inúmeras graphic novels, entre elas Manaus - Cidades Ilustradas, Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, Mundo Pet, Impublicáveis e Transubstanciação.

Mas seu trabalho de maior fôlego é a trilogia detetivesca: O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo partes 1 e 2, reunidos em Diomedes - A trilogia do acidente, publicado em 2012 pela Quadrinhos na Cia. selo da Companhia das Letras.

 

Diomedes, protagonista da saga, foi inspirado em seu pai, como conta na nota do autor, assim como o personagem, foi delegado de polícia e trazia para casa as pastas dos inquéritos. Diomedes se assemelha a Hercule Poirot, baixo, gordo e ostenta um bigode, como o de Salvador Dali. Sua vestimenta revela, também, uma homenagem crítica e irônica, aos grandes detetives do universo das Histórias em Quadrinhos, a gravata esvoaçante como Spirit de Will Eisner e o chapéu de Dick Tracy de Chester Gould.

 

Apesar da aparência física e das peças do vestuário, Diomedes não tem nada do detetive belga de Agatha Christie, nem dos heróis dos quadrinhos, está mais para um anti-herói brasileiro, cínico, vingativo, atrapalhado e apaixonante, descendente direto de Macunaíma, Policarpo Quaresma e Leonardo Pataca Filho. Aposentado, se torna detetive para aumentar o orçamento, porém nunca desvendou um caso, está longe de ser um exemplo de homem ou de cidadão, seu escritório, depois passa a ser sua casa, é um pardieiro sujo e bagunçado.

 

Lourenço Mutarelli utiliza elementos da linguagem cinematográfica para criar a ambientação de sua saga, tanto no estilo Noir, quanto em inúmeras cenas e ângulos inusitados, como por exemplo a sequência da página 85, em que uma possível cliente sobe as escadas em direção ao escritório de Diomedes, o quadro central é a visão da porta do detetive por baixo das pernas da moça.

 

Em O dobro de cinco, primeira parte da trilogia, o traço dos personagens, principalmente o protagonista, é quase uma caricatura, já nas outras partes da trama O rei do ponto e A soma de tudo, inexplicavelmente, há uma significativa mudança estética, seu traço assume uma feição muito mais realista, remetendo, de um lado, a Robert Crumb, retratando personagens desvalidos, asquerosos, de aspectos tétricos, explorando a teatralidade de gestos e o jogo de luz e sombras, evocando, de outro lado, o espírito barroco, tendo como exemplo o mestre Caravaggio.

 

Apesar de a cidade retratada, nas duas primeiras partes, apresentar um nome ligeiramente diferente, Mutarelli apresenta becos, praças, avenidas monumentos e bocas de São Paulo, porém na última, a cidade que serve de palco para as desaventuras de Diomedes é Lisboa.

 

Talvez a grande marca do universo criativo de Lourenço Mutarelli é conseguir desnudar o ser humano, transpor para o plano verbal toda a degradação e transformação da natureza humana causada pelos percalços da vida que levam e pelas ações que praticam, como os personagens de Dostoiévski os de Mutarelli escondem dramas pessoais, se reconhecem no espelho da água suja, a cada passo para sair da lama afundam-se ainda mais, como por exemplo: o palhaço Chupetin, o domador Lorenzo e, talvez, a mais impactante é Judite, esposa de Diomedes, que com as mãos sangrando, tenta limpar uma mancha em uma colher, o detetive tira o objeto dela e revela que a mancha na verdade é seu reflexo.

 

As personagens femininas podem ser divididas em dois grupos, aos moldes românticos: o primeiro é o das mulheres marginalizadas, não dão vez para o sentimentalismo, algumas possuem aspectos masculinos como a mulher barbada, esposa do palhaço e a cigana transexual Melissa, outras abusam da sensualidade, da lascívia, como Judite e Teresa que procura o detetive e não tendo dinheiro para pagá-lo, propõe se entregar a ele. Além de diversas prostitutas que interagem com o protagonista. Dona Suellem, esposa de Pierino, que contrata o detetive em busca de notícias do marido, mas isso é apenas um papel burocrático que ela tem de cumprir. A única personagem feminina retratada de forma idealizada, segundo grupo, é mulher que personifica Lisboa.

 

Para o fã do gênero, Diomedes – A trilogia do acidente é uma coletânea de homenagens. Em o dobro de cinco, em meio a uma perseguição, o automóvel de Diomedes passa pelo Jipe de Tintin e da dupla de detetives Dupond e Dupont, em O rei do ponto o homenageado é Glauco Mattoso que participa como personagem, antes, porém, em uma parede estão pichados Bob Cuspe, personagem de Angeli e Aline e Pedro, de Adão, porém na segunda parte de A soma de tudo quando Diomedes vai ao Festival da Banda Desenhada de Amadora é um verdadeiro desfile de personagens: Hulk, Thor, Capitão América, Fantasma, Homem Aranha, Homem de Ferro, Mandrake, Asterix e Obelix, Capitão Haddock, o professor Girassol, Dick Tracy, Rip Kirby, Pikachu, Aquaman, Popeye, Spirit, Tex, The Yellow Kid, Brucutu, Bolinha e Luluzinha, o recruta Zero, Mafalda, The Sandman, Super Homem e Capitão Marvel, Batman, Mad, Li´l Abner, Calvin e Harold, Dudu e muitos outros. É uma verdadeira diversão encontrar seus personagens preferidos, e também do artista, perambulando pela feira lusitana.

 

Em Diomedes – A trilogia do acidente, Lourenço Mutarelli mostra-se um desenhista talentoso e meticuloso, assim como um roteirista intrigante e instigante. O detetive Diomedes mesmo não sendo um herói clássico, já está na galeria de personagens clássicos da HQ brasileira.

Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3
Âncora 4
Âncora 5
Âncora 6
Âncora 7
Âncora 13

O rufar da São Paulo de Luiz Ruffato

 

 

Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, MG, é filho do segundo pipoqueiro mais importante de lá, — como ele mesmo diz—, e de uma lavadeira de roupas. Trabalhou em diversos jornais, em 2003 decide dedicar-se integralmente à literatura.

 

Eles eram muitos cavalos, seu primeiro livro, lançado em 2001, nome retirado de um verso do poema Dos cavalos da inconfidência de Cecília Meireles, ganhou o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. 

 

Não pode ser considerado um simples romance, mas também não um livro de contos. São setenta capítulos que coabitam um mosaico da dura realidade do cotidiano de pessoas comuns da cidade de São Paulo. 

 

Os três primeiros capítulos: 1- Cabeçalho, 2 – O Tempo e 3 – Hagiologia, demonstram a tentativa de se aproximar de um romance convencional ou parodiá-lo. Os capítulos em muitos casos são fragmentos, não terminam, pois o tempo não é linear, mas simultâneo, o presente, o passado e até a possibilidade do futuro compõem o tempo de um dia na narrativa, a véspera do dia das mães, o mestre mexicano Octávio Paz sobre isso diz:

A época moderna é a aceleração do tempo histórico. Não digo, é claro, que hoje os anos e os dias transcorrem mais depressa, e sim que transcorrem mais coisas e todas elas transcorrem ao mesmo tempo, não uma atrás da outra e sim simultaneamente. Aceleração é fusão: Todos os tempos e todos os espaços confluem aqui e agora. 

 

Paz, Octávio – Os filhos do barro

 

 

Cada capítulo conta histórias de rancores e remorsos, quedas ou derrotas de personagens, migrantes, andantes, empregados de subempregos, moradores de condomínios e muitos outros tipos que passam longe de serem caricatos, são arquétipos de cidadãos da periferia de uma grande cidade. 

 

Em sua maioria, os capítulos relatam a relação familiar, principalmente a relação materna, não só a trajetória de mães solteiras, mas também a relação dos personagens com suas mães ou então personagens que a assumem o papel materno para com outros personagens. 

 

Todos personagens se apresentam esmagados pelo peso da vida e por isso mesmo correm em círculos a procura de espaço ou identidade. À primeira vista, essas histórias podem parecer independentes, porém em uma leitura mais atenta aos poucos é possível identificar as ligações entre elas. 

 

Em Eles eram muitos cavalos há um grande painel de gêneros textuais, como por exemplo: salmo (cap. 36), trechos manuscritos (cap. 17 e 50), classificados de jornal (cap. 18 e 42), estante de livros (cap. 24), Oração (cap. 31), texto dramático (53), diploma (cap. 53), entre inúmeras outros.

 

Além dos inúmeros gêneros, há inúmeras vozes, vários personagens falam ou pensam ao mesmo tempo, há também a presença dos vários tipos do discurso: o direto, o indireto, o indireto livre. O mosaico discursivo é tamanho que por vezes se faz necessário diferentes tipos de fonte, além do negrito e do itálico. O leitor que espera um romance tradicional não simpatiza de imediato com o livro, pois demora para se adequar a tamanha multiplicidade formal. 

 

Segundo o autor a forma é intrínseca ao conteúdo, assim o encontro de linguagens e vozes, compõem uma sinfonia esquizofrênica que refletem o grande caleidoscópio que é a cidade de São Paulo. 

 

Luiz Ruffato afirma que sempre se interessou pela prosa de invenção, é perceptível o parentesco a Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, nos capítulos curtos, a Zero de Ignácio de Loyola Brandão, na polifonia de linguagens, discursos e vozes, e Memórias Sentimentais de João de Miramar de Oswald de Andrade na ausência de linearidade temporal. É perceptível, porém, maiores similaridades aos romances convencionais, como: O cortiço de Aluízio Azevedo, pois a cidade de São Paulo, não é apenas cenário, mas protagonista da obra, as pessoas e as vozes dispõem o macro cosmos urbano, além dos personagens que são guiados por seus instintos. 

 

Vidas Secas de Graciliano Ramos é outro romance similar, não só na estrutura circular, no romance do alagoano inicia e termina na fuga da família de Fabiano, já no de Ruffato o ciclo é indicado por dois retângulos negros que indicam o cair da noite (cap.69), outro ponto de união entre as obras é o cap. 11 cujo protagonista é um cachorro, lembrando o capítulo Baleia de Vidas Secas. O ponto dissonante é o foco narrativo, pois em Vidas Secas o narrador traduz, devido a inabilidade de comunicabilidade, os rústicos diálogos da família sertaneja, em Eles eram muitos Cavalos o narrador apenas relata o que e como ouve.

 

Luiz Ruffato em Eles eram muitos cavalos nos conduz para a borda da pista, para que em meio a poeira levantada, ouçamos o relato de um cavalgar acelerado de uma manada, os desvalidos, os caídos, os solitários, enfim as pessoas invisíveis de uma megalópole cheia de cantos escuros como São Paulo.

 

 

 

O professor de narrativas

Um dos maiores romancista do país, sem sombra de dúvidas, é Cristovão Tezza. Publicou mais de uma dúzia de livros, foi traduzido para inúmeras línguas, com o livro O filho eterno, 2007, ganhou os principais prêmios literários do Brasil: Jabuti, Portugal Telecom, APCA, entre outros.

O professor é seu mais novo romance, divido em capítulos de aproximadamente dez páginas, de leitura fácil, fruída e melodiosa, experimente ler em voz alta! O personagem principal, Heliseu, é um velho professor de filologia que está prestes a ser homenageado pela universidade onde trabalha. O enredo centra-se nas poucas horas em que Heliseu tem para se arrumar e preparar seu discurso para a ocasião.

Um fato interessante da biografia de Tezza é que, antes de se dedicar exclusivamente à literatura, lecionou língua portuguesa na UFSC, outro fato curioso, em A suavidade do vento de 1991, o personagem principal também é um professor. Diferente deste o personagem de O professor não é escritor, observe o que Heliseu diz a respeito:

“(...) - eu poderia ter sido escritor se tivesse tido coragem no momento certo”.

O livro foi lançado em 2014, e surpreendentemente apresenta fatos muito recentes, como, por exemplo, a renúncia do papa Bento XVI, anunciada em fevereiro de 2013. Esse fato por muitas vezes acaba por virar o parâmetro para a mudança dos tempos, pois Heliseu logo nas primeiras páginas anuncia ser um homem antigo.

Outra surpresa é o fato de inúmeras vezes o personagem, por ser filólogo, em alguns trechos narrar em português arcaico. O que é muito interessante para os amantes ou estudantes da língua.

O foco narrativo é o fluxo de pensamentos do professor horas antes da homenagem que receberá. Heliseu tenta não apenas imaginar seu discurso, mas também buscar o sentido da vida nele:

“– o sentido de sua vida, ele decidiu com um sorriso, quase sem ironia, o indicador e o polegar traçando uma linha horizontal imaginária no ar, (...) - o sentido da vida. De onde tirei essa expressão, alguém me disse isso falando sério”.

Ao organizar seus pensamentos e sua memória, sob os sentimentos de perda e: de culpa pelo falecimento da esposa, Mônica, ao cair do sétimo andar; de inabilidade de compreender as opções do filho e decisão de ir morar e constituir família nos EUA; de abandono, pois a amante, Therèze, que ao completar sua tese, com a ajuda de Heliseu, volta para a França; além da recordação do depoimento que dá ao delegado que cuidou do caso da morte da esposa, a quem chama de Inspetor Maigret, em referência explícita ao detetive de Simenon.

 

Heliseu relembra fatos políticos marcantes, divaga sobre suas causas e consequências, busca um inimigo a quem combater, enquanto se levanta da cama, vê a chegada da empregada de anos, toma café e se arruma para o evento.

Para unir fatos e memórias Heliseu simula seu discurso, dessa forma cria um interlocutor, a quem ele escolhe ser: Senhores, o que dá ao livro um interessante tom de oralidade:

“Eu estava, senhores, no meio do caminho: entendam”.

O que mais impressiona em O professor é destreza de Cristovão Tezza ao unir dois narradores: o primeiro é em primeira pessoa: os pensamentos de Heliseu; a segunda, em terceira pessoa: um narrador observador que serve como um auxiliar para o primeiro. Fazendo analogia ao cinema, é como estivéssemos vendo uma cena cuja câmera, em close, em Eliseu e ouvíssemos uma voz em off, -- o narrador de primeira pessoa:

“Por que você não gosta dela? Eu senti ali o peso da ocultação, dela quem? – ela estava me enganando. O que, automaticamente, me dava o direito de – e Heliseu levantou-se do vaso, uma breve onda de suor na testa, apertando a descarga na parede como um gesto de apoio para o corpo que parecia tremer de frio (...)”.

Neste livro Tezza se mostra mais seguro de sua linguagem e de sua proposta literária. O professor Heliseu é um conservador estudioso do arcaico, da antiguidade, porém ao escavar os escombros de sua memória, percebe a inabilidade de se adequar a um mundo dinâmico em plena e eterna mudança e isso nem sempre, para ele, é uma boa notícia, porém para os leitores é uma ótima aula de literatura.

 

O Céu dos suicidas - O salvamento tardio

 

Ricardo Lísias ainda está sob o estigma de um jovem autor, mesmo depois de ser finalista dos prêmios Portugal Telecom de 2006, com Duas praças, Jabuti de 2008 com Anna O. e outras Novelas, ganhar o São Paulo Literatura de 2010 com O livro dos Mandarins, anteriormente já havia publicado Cobertor de estrelas (1999), Capuz (2001), Dos Nervos (2004) , e os infantis: Sai da Frente,Vaca Brava (2001) e Greve Contra a Guerra (2005).

 

Em céu dos Suicidas (2012) temos a perspectiva do narrador e protagonista Ricardo Lísias, é um especialista em coleções, que ao longo da vida se desfez das suas, porém está em busca de um item valioso que se perdeu, sua procura são os motivos que levaram seu melhor amigo André a cometer o suicídio, com isso fatos passados e presentes embaralham-se nesta busca alucinada de alguém que se sente culpado por não perceber como uma vida podia ser salva. Já que não pode salvar seu amigo em vida, tenta salvá-lo na morte: ter a certeza que seu amigo foi para o céu, já que para várias religiões os suicidas não tem esse direito.

 

Coincidência ou não, Ricardo Lísias dedica o Livro dos mandarins a André Silva, um amigo que morou com ele em uma república na Unicamp e que se suicidou. Outra coincidência é o personagem protagonista e narrador da trama ter o mesmo no nome do autor, o que torna difícil para o leitor identificar o relato como uma narrativa biográfica ou ficcional.

 

Ao confundir o personagem com o autor alguns leitores acabam por confundir o escritor com o personagem. Ricardo Lísias, o escritor, conta que isso já lhe trouxe algumas complicações, pois um leitor disse que esperava que ele fosse agressivo da mesma maneira que seu personagem.

 

Estruturado em 90 capítulos de, em média, uma página, perfeitos para quem tem pouco tempo para ler ou tem de se valer de uma leitura fragmentária, pois cada micro-capítulo apresenta unidade narrativa, assim pode ser lido como pequenos contos autônomos.

 

O autor utiliza essa estrutura, segundo pesquisas, pois surtos psicóticos têm curta duração, assim o narrador por estar em processo de surto, vai ao longo do romance se transformando, ao ponto de por diversas vezes sua mãe dizer que não o reconhece. Com o passar das páginas o narrador vai se mostrando cada vez mais rancoroso, irritadiço e agressivo com as pessoas que lhe cruzam o caminho. Palavras, mais precisamente verbos, como: gritar e chorar são repetidas com grande frequência ao longo dos capítulos.

 

Ricardo Lísias, o narrador, vai adquirindo comportamento muito parecido com o que tinha André, rompe várias relações, inclusive profissionais. Talvez sua busca frenética acabe por fazer com ele se transforme no amigo, passa a apresentar taquicardia e suores, sintomas dos surtos ou de alguma síndrome, como a do pânico, por exemplo.

 

As histórias paralelas que surgem no romance, a árvore genealógica da família, a viagem ao Líbano e o passado do tio-avô acabam por ser uma crítica, não só as instituições, familiar e religiosa, como também à toda e qualquer tradição.

 

A linguagem leve, mas concisa, de forte base oral, alucinada e, por vezes, cômica torna a leitura de O céu dos suicidas muito divertida e agradável, porém isso esconde um árduo trabalho de reescrita, Lísias conta que escrevia cada capítulo, assim como todos os seus livros, à mão, em uma folha de papel almaço.

 

Lísias pesquisou por um período de seis meses sobre várias visões religiosas, filosóficas e da psicanálise sobre o suicídio. Para ele o processo de pesquisa é essencial para o embasamento para o texto, segundo depoimento para a revista Língua Portuguesa.

 

Neste livro seja pelo tema abordado ou pela forma criativa e intensa Ricardo Lísias, o autor, se consolida como um dos maiores nomes da literatura nacional.

 

De volta ao Zero

 

 

Ignácio Loyola Brandão há quarenta anos escreve romance de estrutura fora dos padrões que antecipa o hipertexto dos Blogs e so Facebook.

O leitor de hoje em dia talvez não se assuste tanto com a narrativa fragmentada, alguns micro capítulos mais parecem tópicos, pois está familiarizado com os Blogs e com o Facebook. Apesar de ser escrito em 1974 e ser publicado em 1975 é composto de variados gêneros, com textos intercalados, sem linearidade, por vezes nos dá a impressão de ser um roteiro de TV ou de cinema, além disso, apresenta notas de rodapé, como um texto acadêmico, que muitas vezes põe em dúvida ou desmente o que foi escrito acima. Algumas páginas são divididas em colunas, como o jornal, outras trazem diálogo com o leitor, passagens metalingüísticas, tudo isso carregado de muito humor.

A linguagem é predominantemente jornalística, de leitura fácil e ágil, em muitos momentos é retratada a variante oral da língua portuguesa, além de desenhos, onomatopéias e a mistura de trechos de canções, slogans de propagandas comerciais e ditados populares. Há intertextualidade com diversas obras e personagens literários. Os pontos de interrogação iniciam os períodos e em muitos momentos os finais também, o que oferece ao período uma estrutura de tópico.

O foco narrativo não é claro, pois em alguns momentos há um narrador em terceira pessoa, que é interrompido por algum personagem, porém o contrário também ocorre, há a narração em primeira pessoa que é interrompida por um narrador. Um fato bastante curioso é que em uma passagem o narrador declara ter raiva de José.

A narrativa é centrada em José um trabalhador comum, tal qual o nome sugere, empregado em um cinema com a função de caçar ratos. José casa-se com Rosa e passa a ser bombardeado, esse termo é usado em inúmeros capítulos, por slogans e comerciais pregando o consumismo, ao passo que a ditadura aperta suas rédeas contra o povo, ao ponto de se aliar com algumas redes de TVs que ditam sua cartilha nos telejornais às nove da noite, parece até realidade não?

A palavra Zero significa um elemento neutro, o vazio, representa a estagnação, a paralisação que o país sofreu nos anos da ditadura, veja se este trecho do capítulo Frações do melodrama cotidiano: Passava os dias angustiado, uma dor no peito a cabeça estalando. Ficava horas no mesmo lugar, sem andar, com medo de ir para frente, com medo de ir para trás, duro como estátua.

O romance Zero relata a perspectiva de um homem simples sobre a ditadura, triste época da história brasileira, que infelizmente, agora, março de 2014, alguns acéfalos começam a clamar por sua volta, só por isso já valeria sua leitura, porém o leitor contemporâneo ainda ganha uma narrativa divertida e, quarenta anos depois, ainda inovadora.

 

 

 

 

O Macro-universo de Wilson Gorj em sua micronarrativa

 

Wilson Gorj, nascido em Aparecida (SP), é um dos maiores nomes da micronarrativa brasileira, publicou três livros: Sem contos longos (2007), Prometo ser breve (2010) e História para ninar dragões (2012), seis vezes premiado no Concurso de Contos “Aconteceu em Aparecida”, em três anos consecutivos em primeiro lugar, finalista do Mapa Cultural Paulista 2010 na categoria crônica. Foi editor do selo três por quatro, mantém o blog O muro e outras páginas e ao lado do poeta Tonho França, idealizador e editor da editora Penalux.

 

É colunista dos jornais O lince e Comunicação Regional, ambos distribuídos em todo o Vale do Paraíba. A produção de Gorj pode ser encontrada em algumas antologias como: Antologia de 55 Poetas Brasileiros Contemporâneos, Novos Talentos do Conto Brasileiro, Livro de Ouro do Conto Brasileiro, Livro de Ouro da Poesia Brasileira e Sensualidade em Prosa e Verso, Contos de Algibeira, Entrelinhas, XXI poetas de hoje em dia (ante) e Contos e crônicas para viagem.

 

Suas micronarrativas são fartamente encontradas pela internet, em inúmeros sites pelo Brasil e mundo afora: Ficción Mínima (Venezuela), Quimicamente (Espanha) e Songno Del Minotauro (Itália), Cotemporary Brazilian Short Stories (CBSS) (Inglaterra), além das revistas virtuais: Releituras, Cronópios, Germina Literatura, O Bule, Revista ComtemporARTES, Revista Veredas e a portuguesa Minguante.

 

O texto de Wilson Gorj é conciso, de curta extensão, pode variar de uma linha a uma página, é, em geral, pautado pelo humor e ironia, apresenta desfecho surpreendente, crítico quando apresenta situações cotidianas. Em artigo[1], Eloísa Elena Resende Ramos da Silva, Gorj, diz:

O escritor é fruto dessa nova geração apaixonada pelo discurso breve e objetivo. Seus textos falam muito em poucas palavras e são sempre um convite a uma leitura que nos distancia do caos no qual vivemos mergulhados. Poderia dizer que nos leva sempre a uma reflexão de valores, a um novo posicionamento diante da realidade e, mesmo que o texto não tenha a estampa de um discurso ideológico-social, temos um profundo sentimento de encontro com a verdade. O que de melhor se encontra nele é essa crítica sagaz, que pode ser evidenciada no miniconto (...) A ironia também é uma marca de seus trabalhos, a crítica pela convencionalidade e massificação de valores estéticos.(...)

 

Wilson possui a excelência em trabalhar a plurissignificância da palavra, uma ambiguidade intencional e, explora, assim, as contradições da realidade com imensa propriedade, por isso o leitor não deverá fazer uma leitura ingênua do seu texto. (...) Nada nele é superficial; ficar nas metáforas e representações que nos apresenta poderia conduzir-nos ao engano.

 

É leitor ávido de entrevistas de autores renomados e livros sobre a arte de escrever, deles seguiu o conselho: Corte o desnecessário. Acabou por tornar-se um mestre da micronarrativa, ao conhecê-lo pessoalmente, é impossível não rir com a ironia e a antítese: Como alguém que fala tanto e com tamanha rapidez, escreve tão pouco? Talvez por isso essas figuras de linguagem são recorrentes em seu texto.

 

A micronarrativa é uma narrativa curta, pode ser conhecida também, como, por exemplo, miniconto, microconto, nanoconto, microrelato, minificcão, microficção, entre outros. Às vezes, torna-se difícil, até para os críticos, diferenciá-lo da poesia, do poema em prosa, do aforismo e até mesmo do chiste. Alguns poetas, considerados marginais, anos de 1970, como Paulo Leminsk, Cacaso, Chacal e Francisco Alvim já produziam poemas que poderiam ser considerados micronarrativas.

 

É do escritor guatemalteco Augusto Monterroso, a micronarrativa, talvez, mais conhecida: “Cuando despertó, el dinosaurio todavia estaba ali”’ (Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali).  Narrativas breves sempre existiram na história da literatura, desde fábulas da tradição greco/romana, Esopo e Fedro, aos Hai Kais japoneses. No século XX, alguns contistas consagrados, Borges, Cortázar, Hemingway e Kafka, já haviam experimentado formas mais curtas, no Brasil nomes de peso como Dalton Trevisan, Mário Quintana e até Carlos Drummnond de Andrade, escreveram micronarrativas.

 

Nos últimos anos, porém, em vários países do mundo, esse tipo de literatura vem conquistando bastante espaço. A internet propicia, de modo extremamente rápido, o acesso e a troca de informações, talvez devido a curta extensão e rápida leitura, a micronarrativa é o gênero textual que mais se difundiu nesse espaço. Uma das marcas da contemporaneidade é a falta de tempo, o homem se vê mergulhado em afazeres e compromissos profissionais, — os que não são profissionais, são visando uma profissão, como universidade e cursos de língua é muito difundida em mensagens de celular (SMS[2]) ou em redes sociais como o Twitter e o Facebook etc.—, restando pouquíssimo tempo para o lazer, neste contexto a micronarrativa é ideal, por ser de caráter breve, não cansa nem prende o leitor por muito tempo.

 

A micronarrativa é uma versão minimalista das narrativas longas, como o conto e o romance. O minimalismo foi um movimento artístico, surgido nos EUA, nos anos de 1960, caracteriza-se pelo extremo reducionismo das formas, valendo-se de poucos recursos, surgiu como reação ao Expressionismo Abstrato. Sobre o minimalismo, diz, Marcelo Spalding:[3]

Na origem, o termo “minimalismo” remonta a um movimento da pintura e esculturanorte-americanas dos anos sessenta, quando artistas como Donald Judd, Dan Flavin e Robert Morris tornaram-se referências ao evitar o excesso de refinamento, evidente em muitas pinturas e esculturas artesanais. (...)

 

É da arquitetura, porém, que vem o slogan “menos é mais”, síntese perfeita do minimalismo. A frase foi atribuída ao arquiteto alemão Ludwig Mies Van der Rohe, um dos mestres da Bauhaus, pelo crítico Philip Johnson, e traduziria a profunda depuração da forma defendida por Van der Rohe e outros membros da Bauhaus, voltados sempre às necessidades impostas pelo lugar.

 

No Brasil Ah, é? de Dalton Trevisan lançado em 1994, é considerado o primeiro livro de micronarrativa, porém Trevisan já havia publicado narrativas curtas em livros anteriores. Depois, outras publicações se seguiram, destaque para, em 2004, Os cem menores contos brasileiros do século, organizado por Marcelino Freire.

 

Em 2007 eis que surge Sem Contos Longos de Wilson Gorj. Já no título Gorj explicita o ideal de concisão, da micronarrativa. A sonoridade da preposição sem, é a mesma do numeral cem, quantidade de contos do livro, assim Gorj logo de início, dá uma amostra de como estrutura muitas de suas micronarrativas.

Outro fator interessante é que o primeiro microconto é bastante curto, apenas duas linhas, já o centésimo, último, é o mais longo, uma página. Observe:

 

— Você nunca presta atenção ao que falo!

— Ahn?

                          1

 

Deus finalmente resolveu tirar umas férias.

Sendo assim, ao partir em viagem, delegou o comando do Universo a São Francisco, a quem também confiou a responsabilidade de Sua Onipotência.

Eras depois, findo o período de recesso, Deus retornou sem avisar.

Dentre as inovações que percebera no Céu, a que mais lhe chamou a atenção foi a cessação dos gemidos que antes, interminavelmente, subiam do Inferno.

Mal desfez as malas, desceu para lá voando, a fim de averiguar o que tinha acontecido em sua ausência.

Mas qual não foi a sua surpresa ao presenciar as mudanças implantadas ali!Movido por uma compaixão sem limites, o Santo Piedoso havia transformado o Inferno em um novo Paraíso.

A Deus não restou outra escolha senão fechar as portas do Céu e também se mudar para lá.

                            100

 

O leitor é pego meio de surpresa, mais precisamente sequestrado, pois começa a ler uma narrativa brevíssima e, ao longo do livro, se depara com as mais extensas, mas aí já está cativado, deliciado, com a leveza, o humor e a sagacidade e a poesia dos cem contos curtos. Ideal para aquele, aluno, filho ou sobrinho, que diz não gostar de ler, cair do cavalo.

 

Pedro Dutra Gonzaga, em um belíssimo trabalho sobre Ah, é?,de Dalton Trevisan, divide a micronarrativa em duas maneiras: uma pelo número de palavras e outra sobre a poética, sobre a segunda, diz:[4]

 

Chamaremos a essa primeira divisão de formal. No entanto, tal divisão não pode dar conta da natureza precisa dos relatos, por isso, decidimos partir para uma classificação mais fechada do gênero, que pudesse dar conta de suas possibilidades poéticas, assim chegamos a uma divisão poética, construída em conjunto com as observações de vários estudiosos e também oriunda de nossas convicções. Esta tipologia estaria dividida em quatro tipos básicos: da seguinte maneira: relatos muito curtos ou ultracurtos de caráter narrativo (minicontos); percepção poética ou metafísica (percepção); fragmento, esboço ou sketch (vinheta); fábula, paródia ou metaficção (minimetaficção).

 

Sobre os aspectos dessa poética de Sem contos longos, tem-se a estrutura sequencial e lógica, porém com a presença de um desfecho surpreendente. Observe:

 

Estive com ela na quarta-feira santa.

O carnaval já tinha virado cinzas, e nós dois ainda pegando fogo.

                            10

 

De um camelô comprou um filme de sacanagem.

Realmente, uma tremenda sacanagem...

O DVD era virgem.

                            17

 

Vivia à procura de uma companheira que não discordasse dele nem reclamasse de nada. Uma parceira passiva, a qual estivesse sempre pronta a satisfazer todas suas taras e vontades.

De tão difícil procura, estava para desistir quando finalmente encontrou a companheira ideal.

Mandou empacotá-la e saiu com ela debaixo do braço.

                            69

 

Nestas três amostras é nítida a narratividade, há um enredo claro, início, meio e fim bem definidos. O desfecho, fim da narrativa, é surpreendente, porém sem perder o léxico proposto pelo enredo. Na primeira micronarrativa (10) o sintagma final (pegando fogo) atua como antítese de (virado cinzas), termo referente a quarta-feira; na segunda (17) (O DVD era virgem) demonstra a sacanagem do camelô, o termo (sacanagem) é polissêmico, pois pode se referir ao gênero do filme, sinônimo para pornográfico ou, segundo o Houaiss Eletrônico, ato praticado contra alguém como gracejo ou ludibrio; peça, partida, sacanice; já na terceira (69), para o desfecho ganhar significado, o autor, conta com inferência do leitor, pois em (Mandou empacotá-la e saiu com ela debaixo do braço) está implícito que a companheira encontrada pelo protagonista é uma boneca inflável.

 

Em Sem contos longos há, ainda, a presença de inúmeras paródias, veja:

 

Épico etílico

Tomou um porre homérico e acordou com uma enxaqueca dantesca.

                            6

A professora explicava que o poeta queria dizer que a constante pedra no meio do caminho representava os obstáculos da vida.

Mas ela só dizia isso porque não era poeta.

Se fosse, saberia que uma pedra no meio do caminho não representa outra coisa a não ser uma pedra no meio do caminho.

Uma pedra é uma pedra é uma pedra.

                            84

 

Nestes minicontos a paródia é ao universo literário. Em (6) Gorj cria a estrutura de seu conto em cima dos termos (épico, homérico e dantesco) referente à poesia épica grega de Homero, segundo Houaiss Eletrônico, homérico é sinônimo para: grandioso, enorme, extraordinário, já termo dantesco, também segundo o Houaiss Eletrônico, é sinônimo de grande horror; diabólico, medonho, pavoroso, refere-se a Dante Alighieri (autor de A Divina Comédia). Em (84), Gorj traça um belíssimo paralelo de ”as coisas que são são” contra um lirismo exagerado, ao usar como referência o poema, de Carlos Drummond de Andrade, No meio do caminho, e parte da sentença de Gertrude Stein, em epígrafe, “Rosa é uma rosa é uma rosa é levantou-se[5]”.

 

Nesta micronarrativa o universo parodiado é o da Arte, mais precisamente da escultura, há referência a belíssima Vênus de Milo[6]:

 

Consultado pelo instrutor da academia respeito do resultado físico esperado para dali a um ano, disse-lhe resolutamente que até lá ambicionava ter um corpo de estátua grega.

Tal objetivo, no entanto, foi alcançado bem antes.

Sofreu um acidente dias depois, por conta do qual lhe amputaram os dois braços.

                            71

 

Algumas micronarrativas retratam o universo religioso ou são paródias de histórias bíblicas, veja:

 

Deus e o Diabo estão sempre de plantão.

Um para nos ajudar a fazer o bem, O outro, o mal.

Deus já não sabe o que fazer com tantas palavras cruzadas.

                            36

 

A Cidade do Passado ardia em chamas...

Avisadas a tempo pela Vida, salvaram-se a Velhice e a Juventude.

A Vida ainda os alertou: “Fujam e jamais olhem para trás!”

No meio do caminho, a Velhice se transformou em estátua de sal.

                            51

 

Pelo Jardim do Éden, caminhavam de mãos dadas, quando se depararam com um homem pregado na cruz. Acima dele, no céu azul, afugentados, os pecados adejavam suas asas negras...

Temerosa, Eva pediu a Adão que a levasse para bem longe dali.

Após muito andarem, sentindo-se cansada apontou uma árvore e sugeriu:

“Que tal se descansássemos debaixo daquela macieira?”

                            90

 

No primeiro miniconto (36), há referência bem interessante, não há uma passagem específica do livro sagrado, mas ao universo religioso, onde se de um lado o Bem, na figura de Deus, e do outro o Mal, na figura do Diabo. Neste conto o interessante é o desfecho, pois, também, o leitor necessita concluir que o fato de Deus se cansar das palavras cruzadas é o fato de ninguém lhe procurar para ajudar a fazer o bem. No segundo, (51) a paródia é sobre a história de Ló[7]e sua família que foge da destruição de Sodoma. Os termos em letras maiúsculas são símbolos, assim: (Cidade do Passado) é a cidade de Sodoma, (Vida) é Deus, bem como (a Velhice e a Juventude) são a mulher e as filhas de Ló.  No último da seleção (90) a paródia é o episódio de Adão e Eva[8].

 

Uma crítica de alguns é que a micronarrativa, diferente do poema e até mesmo do conto, é fugaz, efêmero, mas não é o que ocorre com as de Wilson Gorj, pois a maioria delas ressoam em nossa memória e, às vezes, nos tiram novos risos ou a vontade de lê-las novamente.

 

Em Prometo ser breve, de 2010, editado pela Multifoco, tem uma belíssima capa, obra de Jules Bastien-Lepage Wilson Gorj não deixa de lado a micronarrativa, mas aproveita-se de outras formas do texto curto, como a vinheta, o aforismo e, por que não, o poema.

 

Prometo ser breve não é um livro extenso, apenas 66 páginas, em cada uma delas de cinco a sete micronarrativas, dividido em três partes I Microcontos, II Reinações no reino da palavras e III Doses homeopoéticas..

 

A primeira parte, I Microcontos, é formada por 38 micronarrativas, de uma a três linhas, numeradas e sem títulos, porém em uma divisão dentro deste capítulo há outras com título.

 

Muitos destes microcontos podem ser caracterizados por Vinhetas. Vinheta é um fragmento de uma narrativa maior, dessa forma não há como nos exemplos de Sem contos longos a estrutura narrativa: Introdução, desenvolvimento e desfecho. O leitor não tem acesso a essa narrativa maior, tendo assim que inferi-la. Veja o que diz, Pedro Gonszaga[9]: 

 

Para nossos fins será chamado de vinheta a toda minificção que, por uma razão ou outra não se completa como narração, apresentando em seu aspecto, ainda que de forma encerrada, uma idéia fragmentária, de uma possível história apenas ensaiada, um esboço com que se registra um cenário ou uma personagem, o que dentro da contística de um Sherwood Anderson, por exemplo, poder-se-ia chamar de sketch, termo de difícil tradução para o português, que muitas vezes se assemelha a um frame, um retrato.

 

Veja alguns exemplos:

21

Trancou portas e janelas. Só deixou aberto o botijão de gás.

 

Padre

Perdeu a fé nos homens.

Desde então se devota às mulher.

 

Companhia loira

— Meretriz!

— Agora não adianta elogiar.

 

Empregadas

— Só este ano é a segunda vez que ela aumenta os seios.

— E o nosso salário, sempre do mesmo tamanho.

 

Nas vinhetas é realização narrativa se dá, justamente, pela falta e indícios, ou pelos índices mínimos, na primeira amostra, 21 os elementos apresentados na primeira oração (trancou portas e janelas) são o cenário para a segunda oração, que quer seja pelo advérbio (Só) ou pela locução verbal (deixou aberto) o termo (botijão de gás) vira o desfecho da narrativa. Já nos outros dois exemplos, Companhia loira e Empregada, Gorj, emprega a antítese, figura estilística bastante utilizada em sua obra, dos termos chaves (Meretriz), no primeiro e (aumento), no segundo, para construir o enredo das histórias.

 

Em II Reinações no reino das palavras, também há uma subdivisão interna do capítulo, na primeira, micronarrativas sem títulos e sem numeração de uma a três linhas, dispostas em ordem crescente e na segunda, com títulos.

 

Aqui o tema central é o humor, por meio da brincadeira com as palavras, em muitos contos a brincadeira é fonética, Gorj, usa a semelhança sonora de alguns termos como (Em meio) e (e-mail) para construir a comicidade:

 

Em meio a nada, e-mail a tudo.

 

Veja mais alguns exemplos:

 

Feia enjoada. Detestava feijoada.

O autor da Odisséia foi O Mero poeta grego.

Em terra de olho quem um cego... Errei!

Quando Levi ta alto, sente-se mais leve: Levita alto. Quanto Levi ta são, não há levitação.

 

 Já em outros o tom humorístico se dá por meio da ortografia, a escrita de alguma palavra, veja:

 

Roubou a cedilha da força e obteve a forca.

 

Dona gramática passou por uma Secretaria e deixou um acento.

A Secretária agradeceu.

 

Para o AMOR ir a ROMA. Basta virar-se do avesso.

 

Em alguns dos mais interessantes, Gorj trabalha a estrutura formal da micronarrativa a fim de lhe dar o aspecto de comicidade:

U´a e´a co´eu a letra e´e.

 

E-mial

Dseculple mnhia dselxeia.

 

Na primeira amostra Gorj, substitui a letra M do microconto a fim de mostrar em sua forma o a ação da ema que comeu a letra M. Na segunda, embaralha as letras das palavras, da mesma forma que digitado por alguém desleixado, porém é possível outra leitura: a digitação de alguém que sofre de Dislexia[10].

 

Em III Doses homeopoéticas é, talvez, a mais lírica do livro. Nesta parte, as micronarrativas estão presentes, mas também há poemas. Todos os textos com título que, não estão, mas poderiam ser divididos em três séries:

A primeira série apresenta micronarrativas de conteúdo lírico-amoroso, vejam alguns exemplos:

 

A voz

Não basta. É preciso

Saber o que dizem os olhos

 

Cego

Conheço seu corpo com (o) a palma da minha mão.

 

Desejo

— Suas mãos estão suando.

— Perto de ti, até elas salivam.

 

Tempos modernos

Meu coração amanheceu pichado com seu nome.

O cupido não usa mais flechas.

 

A segunda e terceira séries, não estão bem delimitadas, mas é possível notar uma predominância do tema tempo sazonal ou transcorrido, veja:

           

Desabrochar

O amor é a primavera dos corações.

Quando chega, eles florescem.

 

Flores

Os Ipês florescem em agosto.

O sorriso, em seu rosto.

 

Fascinação

Seus olhos me inocularam

a vacina do amor.

Hoje sou imune à tristeza;

 

Suspensão

Ao seu lado, não sei das horas.

Do tempo me esqueço.

Mas, se vai embora,

Só eu sei o quanto envelheço.

 

Nesta amostra os dois primeiros, já não se pode precisar se micronarrativa ou poemas, pois não apresentam narratividade, mas um forte acento lírico, em Flores e Fascinação o tema é o tempo sazonal, referente às estações do ano, já em Fascinação e Suspensão a transformação de um sujeito, eu-poético?, no tempo transcorrido, por causa do amor.

Dessa forma, fica para a terceira série um número maior de temas, mas todos os textos apresentam lirismo, como:

 

Prelúdio

Sob a batuta do vento,

As árvores afinam, seus galhos.

Giram as folhas na valsa do outono.

 

Epitáfio

A morte semeia corpos.

Nós colhemos saudade.

 

Minguante

Sereno sorriso...

Na face do lago

A lua imita Narciso.

 

Pesca II

A beleza, às vezes, me fisga.

E eu fico assim,

Como um peixe fora de mim.

 

Livro bom

É uma viagem só de ida.

Nunca nos devolve ao ponto de partida.

 

Ainda se encontram alguns aforismos. Segundo o Houaiss eletrônico, aforismo é uma máxima ou sentença que, em poucas palavras, explicita regra ou princípio de alcance moral; apotegma, ditado; ou ainda, texto curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na escrita filosófica, ger. relacionado a uma reflexão de natureza prática ou moral. Veja alguns exemplos:

 

 

Para o Zé Povinho, Fernando Pessoa é simplesmente um João Ninguém.

 

 

Deus era múltiplo, tinha muitos eus.

Quando se tornou um só, Deus no que Deu.

 

 

Atenção, consumidor! Na sexta-feira santa, o bacalhau parece robalo.

 

 

Neste Prometo ser breve, Gorj continua conciso, breve, mas, sem prometer mais nada, mostra que é um escritor altamente gabaritado em sua proposta, as micronarrativas, porém é tão bom em outros gêneros como o poema, por exemplo.

Em 2012, Wilson Gorj lança as espetaculares Histórias para ninar dragões, dividida em duas partes: a primeira sem nomenclatura, a segunda, Amor, Sexo e Traições. Gorj deixa de lado alguns aforismos, chistes e vinhetas. Todos os textos nestas Histórias são narrativas, apresentam enredo e personagens bem definidos, o que prevalece, e não seria diferente, é a curta extensão, mesmo que algumas de suas histórias tenham até duas páginas.

 

A primeira parte bem que poderia ser dividida por alguns temas recorrentes como: Poetas, poesia e literatura: Plano de voo, Janela, Ave, palavra, Canário, Poeta e contista; e a série: Autores frustrados. O sagrado e as religiões:O grande encontro, Senda fácil, O repicar dos novos tempos, O poder da fé, Macrovisão, A cura, Visão milagrosa.Morte e/ou Suicídio: Mãe solteira, Mar sem fim, Rumo ao desconhecido, Kharma, Cortes, Destino selado, Destinos cruzados, Revertere ad locum tuum, O profissional, Perdas sucessivas. Crítica ao mundo contemporâneo e ao progresso: Breve discurso, Viagens, Parem e Secura. O universo mágico Borboleta, Despeito, Edifício Creta, O pensador, A bordo, Expresso da meia-noite. Por último: Crimes, acidentes e afins: Amora negra, Resignado, Insegurança, Calhambaque, Comunista feita, Luva descartável, Duas pontas, O mesmo fim do Minotauro e Papado.

 

Ao se valer da extensão mais longa Gorj resolve melhor algumas narrativas e mostra que é um escritor de muito talento. Em 2011 nasce Marina, sua filha, deve ser por isso que inúmeras micronarrativas dizem respeito ao paternalismo ou ao ambiente familiar, como no belíssimo e tocante:

 

Positivo:

 

Faltavam poucos dias para o Natal, quando topei com Papai Noel. Estava bêbado. Parou na minha frente e me pediu um trocado. Dei o dinheiro e brinquei: “Espero que neste ano o senhor se lembre do meu presente”. Ele me olhou, sério. “Não se preocupe, rapaz!”, respondeu. “Seu presente já está reservado.” E, com o polegar sinalizando para cima, completou: “Pode acreditar que desta vez ele vem”.

 

Dito isso, deu-me as costas e, antes de partir, ainda repetiu: “Virá, sim. Desta vez não falha”. Sua mão mantinha o polegar levantado. “Um belo presente. Aguarde.”

Dias depois, já não me lembrava mais desse episódio. Estávamos todos em casa. Era noite de Natal. 

Quando ficamos a sós, minha mulher me entregou um embrulho bonito, entrelaçado por fita vermelha. “Seu presente”, sussurrou ao meu ouvido, enquanto nos abraçávamos. 

Desembrulhei. Dentro, apenas uma folha azulada, que trazia o resultado de um exame. De imediato veio-me à lembrança o sinal que o bêbado fizera em nosso encontro. 

Confesso que chorei. Lágrimas de um adulto que voltava a crer em Papai Noel.

 

Ao fazer o que nem sempre deve ser feito: relação com a biografia do autor, torna-se explicável o fato desta micronarrativa apresentar o narrador em primeira pessoa, do discurso, o que a torna mais emocionante.

 

Outro aspecto interessante, e uma novidade, é o fato de Gorj apresentar não só uma micronarrativa, mas uma série sobre o mesmo título: Observe:

 

Sonhos de criança

I

 

Ao alívio, seguiu-se o espanto. Diante dos meus olhos, não havia nenhuma papa nojenta ou sopa gástrica, e sim algo bem mais sólido, para não dizer surpreendente. De minhas entranhas, eu havia expelido uma criança.

O absurdo não parou por aí. Enquanto eu chorava, o bebê foi crescendo até atingir a idade de uns quatro, cinco anos. Ele se levantou, eu permaneci sentado. Ficamos cara a cara. Envergonhado, parei de chorar.

Olhávamos um para o outro. Suas mãos me enxugaram as lágrimas. Ele sorria. Um sorriso cheio de ternura e familiaridade — luminosa janela através da qual eu enxergava a paisagem do passado.

Mais que uma janela, era um espelho.

No reflexo, o menino estava mais crescido. Tínhamos agora a mesma idade, o mesmo rosto. Sorríamos.

 

II

Outro sonho. Nesse, eu caminhava com os olhos contemplando a noite estrelada. A olhar tanto para cima, obviamente descuidava do solo e, por essa razão, tropeçava a todo instante. Um desses tropeços me pôs de frente a uma criança.

Não posso afirmar se era menino ou menina. Só sei que era bela e alegre.

– Por que olha tanto para o alto? – ela perguntou.

Apontei minha resposta: “As estrelas. São muito bonitas”.

A criança sorriu. Depois, sem eu pedir, deu-me a flor que trazia presa aos cabelos.

– Sim, ela concordou, — São lindas. Mas  nenhuma delas é mais bela que esta flor.

A flor. Contemplei-a por um instante; fascinado com sua beleza. Cheguei-a mais perto, aspirei-lhe seu perfume até ficar entorpecido. A voz da criança, soava-me longínqua, sussurrante:

– Acorde. Desperte enquanto é tempo. Não sonhe tanto. Os sonhos se parecem com as estrelas: brilham muito, mas estão longe de nossas mãos. E a vida, a vida está mais para as flores; não ostentam o brilho das estrelas, mas podemos tocá-las, sentir seu perfume. Olhe o mundo... Não é um belo jardim?

Acordei. O luar entrava no meu quarto. Levantei e fui direto à janela. Olhei para o alto: o céu, todo estrelado, belo como um jardim.

Não sei por quanto tempo fiquei admirando o cintilar das estrelas. O que se é que, depois dessa noite, nunca mais sonhei com a bela criança.

 

 

Quando a micronarrativa tem mais de uma página, Gorj, costuma dividi-la de um modo que, no fim da primeira parte parece haver um desfecho, mas a narrativa segue na segunda. Observe Mar sem fim:

A primeira fase de sua vida foi marcada pelas histórias de aventura – preferencialmente aquelas ambientadas no mar. Não é de admirar que o seu livro predileto fosse o Moby Dick, no qual mergulhara várias vezes, relendo-o sempre com igual empolgação.

Entretanto, adulto, viu-se obrigado a trocar as leituras marítimas por outras menos imaginosas. A partir de então a aridez dos livros técnicos veio ocupar-lhe os dias.

Assim foi até o dia em que terminou numa cama de hospital, vítima de grave enfermidade.

Como não tivesse família nem parentes próximos, contava unicamente com a assistência de um amigo, na verdade um colega de trabalho, a quem pedia vários favores. O último deles veio acompanhado do seguinte argumento: “Sei que posso morrer a qualquer hora. Mas, enquanto estiver vivo, pelo menos não quero morrer de tédio”. Seu pedido consistia em que o colega lhe arranjasse um livro. Não qualquer livro. Tinha de ser um que falasse do mar: “Uma história marítima”.

 

*

No dia seguinte, chegou a encomenda.

Mal leu o título, sentiu uma grande onda de emoção subir-lhe a garganta e, com força, arrebentar-se em seus olhos. Mais do que um livro, aquele seria um portal através do qual teria de volta toda sua infância povoada de aventuras e mistérios.

Ainda trazia a vista marejada, quando o colega se despediu, deixando-o a sós com o livro.

Mãos à obra. Urgia singrar-lhe as páginas.

Enfunadas as velas da imaginação, partiu rumo à longa viagem...

Partida sem volta.

No peito inerte, jazia o livro com as páginas voltadas para baixo. Parecia emborcado, como um barco devolvido à praia.

 

 

O leitor ao chegar ao final da página, — marcada com o *—, tem a impressão, de ter chegado ao fim da micronarrativa, porém é surpreendido com a retomada (No dia seguinte, chegou a encomenda) e então se tem um novo clímax (Partida sem volta) e desfecho (No peito inerte, jazia o livro com as páginas voltadas para baixo. Parecia emborcado, como um barco devolvido à praia).

 

Em Amor, sexo e traição o bom nome do capítulo, porém revelador de seu conteúdo. Gorj é um ótimo contador de histórias e isso fica bem claro na maneira em que estrutura seu texto. Observe em Sábado de Aleluia, como é definida as vozes do narrador e dos personagens:

Diante da porta de aço, a criançada não parava de gritar:

– QUEREMOS BALA! QUEREMOS BALA!

Às costas de um dos garotos, o boneco de Judas aguardava a hora de ser devidamente linchado, enforcado e queimado.

– Queremos bala – berravam a plenos pulmões.

De repente a porta de aço sobe com força. Surge, então, a figura do proprietário do bar. O rosto vermelho de raiva.

Raiva anterior à algazarra dos moleques. Acabara de descobrir traição da esposa e vingou-se dela com um tiro certeiro, fatal.

O sangue ainda fervia em suas veias.

– Arruaceiros! Não é bala que vocês querem? Então, tomem! Tomem bala!

 

O Judas foi o primeiro a cair.

 

Além disso, ao usar as letras maiúsculas, caixa alta, na fala dos meninos, Gorj ressalta seus gritos, espécie de combinado implícito nos diálogos em conversas via SMS ou em bates-papos ou redes sociais da Internet.

 

Em Histórias para ninar dragões Wilson Gorj se supera, prova, a quem ainda duvidava, que é um exímio contador de histórias, ainda de maneira concisa, humorística e irônica, porém mostra o aprimoramento na profundidade de seus personagens, histórias com anticlímax e enredo mais complexos.

 

Ao acompanhar sua obra na internet, em seu blog ou em outros, nos jornais ou em seus livros é perceptível que inúmeros contos foram mexidos, reescritos, isso prova que, além de minimalista, é perfeccionista: estuda, trabalha a palavra certa, justa para a melhor forma de contar. Aliado ao fato de ter uma vasta criatividade, e por isso mesmo tenha muito a dizer, tudo isso faz que Wilson Gorj seja uma das vozes mais retumbantes no universo da micronarração.

 

 

 

Os escritores do Vale do Paraíba

 

A região do Vale do Paraíba sempre foi palco para grandes prosadores, como: Altino Machado, Brito Boca, Camões Filho, Cassiano Ricardo, Cesídio Ambrogi, Dias Monteiro, Euclides da Cunha, Eugênia Sereno, Francisco de Assis Barbosa, Francisco Sodero Toledo, Homero Senna, Joaquim Maria Botelho, José Augusto César Salgado, José Fernandes de Oliveira, José Geraldo Evangelista, José Geraldo Nogueira Moutinho, Maria Morgado de Abreu, Miguel Reale, Oracy Nogueira, Oswaldo Barbosa Guisard, Paulo Pereira dos Reis, Plínio Salgado, Vicente Félix de Castro, Waldomiro Silveira, entre outros, porém o mais notório ainda seja Monteiro Lobato. 

 

Nascido em Taubaté, após ser reprovado em uma avaliação oral de português o jovem Monteiro Lobato, na época com treze anos, dedica-se o ano inteiro de 1895 para estudos do idioma, talvez venha desse episódio seu amor pela língua portuguesa. Aos dezessete anos, órfão de pai e mãe, passa a ser criado por seu avô em uma fazenda. 

 

Lobato sempre foi um patriota, assim como sempre esteve à frente de seu tempo. Em 1918 transfere-se para São Paulo e inaugura a primeira editora brasileira: Monteiro Lobato & Cia, até esse ano os livros brasileiros eram impressos em Portugal. Em 1926 é nomeado adido comercial da embaixada brasileira nos EUA. Lobato é um grande entusiasta da sociedade e da cultura americana. Fundou diversas companhias petrolíferas no Brasil. Além do petróleo Lobato empunhou inúmeras outras bandeiras, como por exemplo: a do ferro, da saúde pública, do meio ambiente e até da liberdade linguística. 

 

Na vasta obra de Monteiro Lobato pode-se encontrar um caráter revolucionário, mesmo quando chamado de reacionário por nunca ter aderido ao Modernismo, mas principalmente, pelo polêmico artigo "Paranoia ou Mistificação?" onde critica a mostra de pintura de Anita Malfati. Inúmeros escritores modernos como Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, assim como capas com ilustrações da própria Anita foram editados por ele em sua editora, além de esforços para que Macunaíma de Mário de Andrade fosse traduzido e distribuído no mercado estadunidense. 

 

Lobato é ícone da literatura infantil. É impossível encontrar alguém que nunca tenha lido ou assistido algum episódio do Sítio do Pica-pau-amarelo ou alguma adaptação das principais fábulas, mitos e as principais narrativas da civilização ocidental. É em sua literatura infantil onde é mais explícita a preocupação em educar seu público leitor. 

 

Nos livros de contos Urupês (1918) e Cidades Mortas (1919) que Lobato se volta para o Vale do Paraíba para apresentar sua crítica social em um painel de decadência das fazendas de café. Lobato apresenta personagens sem esperanças ou perspectivas, como o famoso Jeca Tatu. 

 

Em 2010, o livro Negrinha (1920) voltou a ganhar as páginas dos jornais, pois tramitou no Supremo Tribunal Federal uma ação pela acusação de racismo, com certeza movida por má leitura e até mesmo pelo entusiasmo da cartilha do “politicamente incorreto” em moda hoje em dia. 

 

Se Monteiro Lobato foi um homem com idéias revolucionárias, a escritora Ruth Guimarães no Vale do Paraíba foi a mulher herdou esse legado.. 

 

Uma das primeiras escritoras negras a ter notoriedade nacional Ruth Guimarães nasceu, no ano de lançamento de Negrinha, em Cachoeira Paulista, como Lobato, também cresceu no sítio do avô, aos dez anos publicou seus primeiros poemas nos jornais A Região e A notícia. Em 1938 foi para São Paulo cursar Letras Clássicas, frequentou também a Escola de Arte Dramática, foi discípula e aluna de Mário de Andrade em estudos de folclore e literatura popular. 

 

Colaborou com diversos jornais paulistas e cariocas e com a Revista do Globo de Porto Alegre. É autora de mais de quarenta livros, entre eles traduções de Alexandre Dumas Filho, Balzac e Dostoievski. 

 

Fundou a Academia Cachoeirense de Letras, o Museu de Folclore Valdomiro Silveira e a Guarda Mirim de Cachoeira Paulista, participou do primeiro Congresso Brasileira de Folclore da Sociedade Paulista de Escritores. É membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos e da União Brasileira de Escritores. Em 1989, recebeu o Prêmio Cultural “Eugênia Sereno”. Em 18 de setembro de 2008, foi empossada na Academia Paulista de Letras, foi convidada a assumir a pasta da Cultura em Cachoeira Paulista. . 

 

Lançado em 1946 seu primeiro romance Água Funda centrado em uma comunidade ainda no ambiente rural da região da Serra da Mantiqueira retratada de forma mágica e mística. No lançamento estiveram presentes Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles entres outras personalidades, em 2004 o livro foi reeditado pela Nova Fronteira com prefácio de Antonio Cândido. 

 

Filhos do Medo (1950) seu segundo livro, é fruto de imensa pesquisa sobre o diabo no folclore brasileiro, acabou sendo a única escritora latino-americana a ter um verbete na Encyclopédie Française de la Pléiade. 

 

A Região do Vale do Paraíba é constituída de 39 municípios, sempre esteve ligada aos ciclos econômicos do café, hoje a agropecuária é importante para inúmeras cidades, a região é o segundo maior pólo produtor de leite do Brasil, o arroz é um dos produtos agrícolas mais cultivados, porém nos últimos cinquenta anos, a região se industrializou rapidamente, abriga, entre outras, as fábricas da Volkswagem, Ford, LG, além da EMBRAER, hoje a região tem o PIB de US$ 16,87 milhões, um dos maiores do estado, bem diferente da época de Urupês e Água Funda. 

 

Hoje o escritor valeparaibano está longe do ambiente rural, cenário de inúmeras obras, retrata a vida em grandes centros urbanos, marcada pelas mudanças dos novos tempos, sobretudo das novas tecnológicas. Nessa atual sociedade um escritor não precisa mais ser um revolucionário, a não ser em sua própria escrita. O tempo passou, o público leitor mudou, só não mudou o fato de esse público ser pequeno. 

 

A região abriga, também, inúmeros grupos literários, academia de letras, faculdades, bibliotecas, livrarias, editoras, de modo que a literatura continua borbulhante e efervescente de jovens talentos das letras. 

 

Um deles é Wilson Gorj, de Aparecida do Norte, seus microcontos encabeça a atual prosa revolucionária, não só do Vale do Paraíba, mas do Brasil. Gorj já lançou três livros Sem contos longos (2007), Prometo ser breve (2010) e História para ninar dragões (2012), finalista do Mapa Cultural Paulista 2010 na categoria crônica, três vezes premiado em primeiro lugar no Concurso de Contos “Aconteceu em Aparecida”, Seus microcontos são encontradas em inúmeros sites do Brasil e de outros países: Ficción Mínima (Venezuela), Quimicamente (Espanha) e Songno Del Minotauro (Itália), Cotemporary Brazilian Short Stories (CBSS) (Inglaterra) além das revistas virtuais: Releituras, Cronópios, Germina Literatura, O Bule, Revista ComtemporARTES, Revista Veredas e a portuguesa Minguante. 

 

Da mesma cidade de Ruth Guimarães, Cachoeira Paulista, Jurandir Rodrigues, membro da Academia Cachoeirense de Letras e Artes. Em 2011 lança Lapsos e Tessituras, textos curtos, não tão curtos quanto os de Gorj, sem preocupação em delimitá-los em crônicas ou contos, Jurandir apresenta muita poesia em uma prosa concisa, comunicativa e intimista.

 

Outros escritores, igualmente jovens e talentosos, como por exemplo, Iran Barbosa, também de Cachoeira Paulista, Dora Vilella e Eliana Maciel, ambos de Guaratinguetá e a dupla de São José dos Campos:Pablo Gonzales e Fernando Scarpel, garantem que a prosa valeparaibana sempre estará em boas mãos e sob os olhos dos leitores, cada vez mais escassos, do Brasil inteiro.

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